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Vade Mecum Espírita

Autenticidade dos Evangelhos


        Nos tempos afastados, muito antes da vinda de Jesus, a palavra dos profetas, qual raio velado da verdade, preparava os homens para os ensinos mais profundos do Evangelho.
        Mas, já desvirtuado pela versão dos Setenta, o Antigo Testamento não refletia, nos últimos séculos antes do Cristo, mais que uma intuição das verdades superiores[i].
        “As eternas verdades, que são os pensamentos de Deus – diz eminente individualidade do espaço – foram comunicadas ao mundo em todas as épocas, levadas a todos os meios, postas ao alcance das inteligências, com paternal bondade. O homem, porém, as tem desconhecido muitas vezes. Desdenhoso dos princípios ensinados, arrastado por suas paixões, em todos os tempos passou ele ao pé de grandes coisas sem as ver. Essa negligência do belo moral, causa de decadência e corrupção, impeliria as nações à própria perda, se o guante da adversidade e as grandes comoções da História, abalando profundamente as almas, não as reconduzissem a essas verdades.”
        Veio Jesus, espírito poderoso, divino missionário, médium inspirado. Veio, encarnando-se entre os humildes, a fim de dar a todos o exemplo de uma vida simples e, entretanto, cheia de grandeza – vida de abnegação e sacrifício, que devia deixar na Terra impagáveis traços.
        A grande figura de Jesus ultrapassa todas as concepções do pensamento. Eis por que não a pode ter sido criada pela imaginação. Nessa alma, de uma serenidade celeste, não se nota mácula nenhuma, nenhuma sombra. Todas as perfeições nela se fundem, com uma harmonia tão perfeita que se nos afigura o ideal realizado.
        Sua doutrina, toda luz e amor, dirige-se sobretudo aos humildes e aos pobres, a essas mulheres, a esses homens do povo curvados sobre a terra, a essas inteligências esmagadas ao peso da matéria e que aguardam, na provação e no sofrimento, a palavra de vida que as deve reanimar e consolar.
        E essa palavra lhes é prodigalizada com tão penetrante doçura, exprime uma fé tão comunicativa, que lhes dissipa todas as dúvidas e os arrasta a seguir as pegadas do Cristo.
        O que Jesus chamava pregar aos simples “o evangelho do reino dos céus”, era pôr ao alcance de todos o conhecimento da imortalidade e do Pai comum, do Pai cuja voz se faz ouvir na serenidade da consciência e na paz do coração.
        Pouco a pouco essa doutrina, transmitida verbalmente nos primeiros tempos do Cristianismo, se altera e complica sob a influência das correntes opostas, que agitam a sociedade cristã.
        Os apóstolos, escolhidos por Jesus para lhe continuarem a missão, muito bem o tinham sabido compreender; haviam recebido o impulso da sua vontade e da sua fé. Mas os seus conhecimentos eram restritos e eles não puderam senão conservar piedosamente, pela memória do coração, as tradições, os pensamentos morais e o desejo de regeneração que lhes havia ele depositado no íntimo.
        Em sua jornada pelo mundo os apóstolos se limitam, pois, a formar, de cidade em cidade, grupos de cristãos, aos quais revelam os princípios essenciais; depois, vão intrepidamente levar a “boa nova” a outras regiões.
        Os Evangelhos, escritos em meio das convulsões que assinalam a agonia do mundo judaico, depois sob a influência das discussões que caracterizam os primeiros tempos do Cristianismo, se ressentem das paixões, dos preconceitos da época e da perturbação dos espíritos. Cada grupo de fiéis, cada comunidade, tem seus evangelhos, que diferem mais ou menos dos outros[ii]. Grandes querelas dogmáticas agitam o mundo cristão e provocam sanguinolentas perturbações no Império, até que Teodósio, conferindo a supremacia ao papado, impõe a opinião do bispo de Roma à cristandade. A partir daí, o pensamento, criador demasiado fecundo de sistemas diferentes, há de ser reprimido.
        A fim de pôr termo a essas divergências de opinião, no próprio momento em que vários concílios acabam de discutir acerca da natureza de Jesus, uns admitindo, outros rejeitando a sua divindade, o papa Damaso confia a São Jerônimo, em 384, a missão de redigir uma tradução latina do Antigo e do Novo Testamento. Essa tradução deverá ser, daí por diante, a única reputada ortodoxa e tornar-se-á a norma das doutrinas da Igreja: foi o que se denominou a “Vulgata”.
        Esse trabalho oferecia enormes dificuldades. São Jerônimo achava-se, como ele próprio o disse, em presença de tantos exemplares quantas cópias. Essa variedade infinita dos textos o obrigava a uma escolha e a retoques profundos. É o que, assustado com as responsabilidades incorridas, ele expõe nos prefácios da sua obra, prefácios reunidos em um livro célebre. Eis aqui, por exemplo, o que ele dirigiu ao papa Damaso, encabeçando a sua tradução latina dos Evangelhos:
        “De velha obra me obrigais a fazer obra nova. Quereis que, de alguma sorte, me coloque como árbitro entre os exemplares das Escrituras que estão dispersos por todo o mundo e, como diferem entre si, que eu distinga os que estão de acordo com o verdadeiro texto grego. É um piedoso trabalho, mas é também um perigoso arrojo, da parte de quem deve ser por todos julgado, julgar ele mesmo os outros, querer mudar a língua de um velho e conduzir à infância o mundo já envelhecido.
        “Qual, de fato, o sábio e mesmo o ignorante que, desde que tiver nas mãos um exemplar (novo), depois de o haver percorrido apenas uma vez, vendo que se acha em desacordo com o que está habituado a ler, não se ponha imediatamente a clamar que eu sou um sacrílego, um falsário, porque terei tido a audácia de acrescentar, substituir, corrigir alguma coisa nos antigos livros? Meclamitans esse sacrilegum qui audeam aliquid in veteribus libris addere, mutare, corrigere.[iii]
        “Um duplo motivo me consola desta acusação. O primeiro é que vós, que sois o soberano pontífice, me ordenais que o faça; o segundo é que a verdade não poderia existir em coisas que divergem, mesmo quando tivessem elas por si a aprovação dos maus.”
        São Jerônimo assim termina:
        “Este curto prefácio tão-somente se aplica aos quatro Evangelhos, cuja ordem é a seguinte: Mateus, Marcos, Lucas e João. Depois de haver comparado certo número de exemplares gregos, mas dos antigos, que se não afastam muito da versão itálica, combinamo-los de tal modo (ita calamo temperavimus) que, corrigindo unicamente o que nos parecia alterar o sentido, conservamos o resto tal qual estava.” (Obras de São Jerônimo, edição dos Beneditinos, 1693, t. I, col. 1425.)
        Assim, é conforme uma primeira tradução do hebraico para o grego, por cópias com os nomes de Marcos e Mateus; é, num ponto de vista mais geral, conforme numerosos textos, cada um dos quais difere dos outros (tot sunt enim exemplaria quot codices) que se constitui a Vulgata, tradução corrigida, aumentada, modificada, como o confessa o autor, de antigos manuscritos.
        Essa tradução oficial, que devia ser definitiva segundo o pensamento de quem ordenara a sua execução, foi, entretanto, retocada em diferentes épocas, por ordem dos pontífices romanos. O que havia parecido bom, do ano 386 ao de 1586, o que fora aprovado em 1546 pelo concílio ecumênico de Trento, foi declarado insuficiente e errôneo por Sixto V, em 1590. Fez-se nova revisão por sua ordem; mas a própria edição que daí resultou, e que trazia o seu nome, foi modificada por Clemente VIII em uma nova edição, que é a que hoje está em uso e pela qual têm sido feitas as traduções francesas dos livros canônicos, submetidos a tantas retificações através dos séculos.
        Entretanto, a despeito de todas essas vicissitudes, não hesitamos em admitir a autenticidade dos Evangelhos em seus primitivos textos. A palavra do Cristo aí se ostenta poderosa; toda dúvida se desvanece à fulguração da sua personalidade sublime. Sob o sentido adulterado, ou oculto, sente-se palpitar a força da primitiva idéia. Aí se revela a mão do grande semeador. Na profundeza desses ensinos, unidos à beleza moral e ao amor, sente-se a obra de um enviado celeste.
        Ao lado, porém, dessa potente destra, a frágil mão do homem se introduziu nessas páginas, nelas enxertando débeis concepções, ligadas bem mal aos primeiros pensamentos e que, a par dos arroubos da alma, provocam a incredulidade.
        Se os Evangelhos são aceitáveis em muitos pontos, é, todavia, necessário submeter o seu conjunto à inspeção do raciocínio. Todas as palavras, todos os fatos que neles estão consignados não poderiam ser atribuídos ao Cristo.
        Através dos tempos que separam a morte de Jesus da redação definitiva dos Evangelhos, muitos pensamentos sublimes foram esquecidos, muitos fatos contestáveis aceitos como reais, muitos preceitos, mal interpretados, desnaturaram o ensino primitivo. Para servir às conveniências de uma causa, foram decotados os mais belos, os mais opulentos ramos dessa árvore de vida. Sufocaram, antes do seu desabrochar, os fortalecedores princípios que teriam conduzido os povos à verdadeira crença, à que eles hoje em dia inda procuram.
        O pensamento do Cristo subsiste no ensino da Igreja e nos sagrados textos, mesclado, porém, de vários elementos, de opiniões ulteriores, introduzidos pelos papas e concílios, cujo intuito era assegurar, fortalecer, tornar inabalável a autoridade da Igreja. Tal foi o objetivo colimado através dos séculos, o pensamento que inspirou todos os retoques feitos nos primitivos documentos. A despeito de tudo o que na Igreja resta de espírito evangélico, verdadeiramente cristão, foi o suficiente para produzir admiráveis obras, obras de caridade que fizeram a glória das igrejas cristãs e que protestam contra o fato de se acharem associadas a tantos ambiciosos empreendimentos, inspirados no apego ao domínio e aos bens materiais.
        Seria preciso grande trabalho para destacar o verdadeiro pensamento do Cristo do conjunto dos Evangelhos, trabalho possível, posto que árduo para os inspirados, dirigidos por segura, mas labor impossível para os que só por suas próprias faculdades se dirigem nesse Dédalo em que com as realidades se misturam as ficções, com o sagrado o profano, com a verdade o erro.
        Em todos os séculos, impelidos por uma força superior, certos homens se aplicaram a essa tarefa, procurando desembaraçar o supremo pensamento das sombras em torno dele acumuladas.
        Amparados, esclarecidos por essa divina centelha que para os homens apenas brilha de um modo intermitente, mas cujo foco jamais se extingue, eles afrontaram todas as acusações, todos os suplícios, para afirmar o que acreditavam ser a verdade. Tais foram os apóstolos da Reforma.
        Eles foram, em sua tarefa, interrompidos pela morte; mas do seio do espaço ainda sustentam e inspiram os que se batem por essa grande causa. Graças aos seus esforços, a noite que pesa sobre as almas começa a dissipar-se; raiou a aurora de uma revelação muito mais vasta.
        É com o auxílio dos esclarecimentos trazidos por essa nova revelação, científica e, ao mesmo tempo, filosófica, já espalhada em todo o mundo sob o nome de Espiritismo, ou moderno Espiritualismo, que procuraremos escoimar a doutrina de Jesus das obscuridades em que o trabalho dos séculos a envolveu. Chegaremos, assim, à conclusão de que essa doutrina é simplesmente à volta ao Cristianismo primitivo, sob mais precisas formas, com um imponente cortejo de provas experimentais, que tornará impossível todo monopólio, toda reincidência nas causas que desnaturaram o pensamento de Jesus.
 
[i] Nota 1:
Sobre a autoridade da Bíblia e as origens do Antigo Testamento
Para a maior parte das igrejas cristãs a Bíblia é a suprema autoridade, sendo os sessenta e seis livros que compõem o Antigo e o Novo Testamento a expressão da “palavra de Deus”.
Nós, filhos curiosos do século XX, perguntamos: porque precisamente sessenta e seis livros? Porque nem mais, nem menos?
Os livros do Antigo Testamento foram escolhidos, entre muitos outros, por desconhecidos rabinos judeus. O valor desses livros é, de resto, muito desigual. O segundo livro dos Macabeus, por exemplo, é muitíssimo superior ao de Ester; o livro da sabedoria excede em valor o Eclesiastes.
O mesmo aconteceu com o Novo Testamento, composto de conformidade com uma norma que os cristãos do primeiro século não conheciam. O Apocalipse foi escrito no ano 68 depois de Jesus-Cristo. O quarto Evangelho só apareceu em fins do século I – alguns dizem no ano 140 –; um e outro trazem o nome de S. João; mas esses dois livros são animados de um espírito bem diferente. O primeiro é obra de um cristão judeu; o outro é escrito por um cristão da escola filosófica de Alexandria, que não só havia rompido com a dogmática judaica, mas se propunha mesmo combatê-la.
Compreende-se facilmente que os reformadores protestantes, baseando-se no princípio de que a Bíblia constitui a “palavra de Deus” tenham tropeçado em insuperáveis dificuldades. Foram eles, sobretudo, que emprestaram à Bíblia essa autoridade absoluta que tantos abusos devia ocasionar: é necessário, porém, não os julgar unicamente conforme os resultados da teologia que instituíram. As necessidades do tempo os coagiram a opor à autoridade da Igreja Romana, ao abuso das indulgências, ao culto dos santos, às obras mortas de uma religião em que as frívolas práticas haviam substituído a fé vivificadora, a soberania de Deus e a autoridade da sua palavra, expressa na Bíblia.
Não obstante a disparidade dos elementos que compõem essa obra, não se lhe poderia contestar a alta importância e a inspiração por vezes elevada. Um rápido exame nos provará, todavia, que ela não pode ter a origem que lhe é atribuída.
Gênesis – Se lermos com atenção os primeiros capítulos do Gênesis verificaremos que encerram duas narrativas distintas da Criação. Os textos do capítulo I até o capítulo II, vv. 1 a 3, contêm uma primeira exposição, mas, no capitulo II, 4, começa uma outra narração; essas duas narrativas nos revelam o pensamento de dois autores diferentes. Um, falando de Deus, o chama Eloim, isto é, “os deuses”. Na opinião de certos comentadores, esse termo designaria as forças, os seres divinos, os Espíritos colaboradores do único. Esse parecer é confirmado por muitas passagens do sagrado livro.
“Eis aí está feito Adão como um de nós”, lê-se por exemplo, no Gênesis.[i] “Eu sou o Jahveh de vossos deuses”, diz o Levítico.[ii] No livro de Daniel, falando desse profeta, a mulher de Baltazar afirma que ele possui o espírito dos deuses santos.[iii] Com o plural Eloim, exprimindo a coletividade, o verbo deve ser empregado no singular: os deuses “criou”, ao passo que, falando essas forças de si mesmo, o verbo está no plural. Disse Eloim: “Façamos o homem à nossa imagem”.
O outro autor do Gênesis emprega o termo Jeová – Jahveh, segundo os modernos orientalistas – nome particular do Deus de Israel. Essa diferença é constante e se encontra em toda a obra, a tal ponto que os exegetas chegaram a distinguir esses dois autores, designando-os pelos nomes de autor Eloísta e autor Jeovista.
Cada um deles tem suas opiniões particulares. O primeiro, por exemplo, se esforçou por dar uma sanção divina à instituição do sábado, alegando que Deus havia, ao sétimo dia, repousado. O segundo explica o problema do sofrimento humano. Provém, diz ele, do pecado, e o pecado decorre da queda de Adão. Terrível encadeamento de conseqüências dogmáticas, que devia pesar aflitivamente sobre o pensamento humano e lhe deter o surto. Renan proclama esse autor o maior dos filósofos. Aí está uma apreciação bem singular. Não se pode, inquestionavelmente, negar que as suas opiniões tivessem inspirado São Paulo, Santo Agostinho, Lutero, Calvino, Pascal; mas em que terríveis dédalos não as emaranharam a razão humana!
No capítulo IV do Gênesis uma estranha contradição se patenteia. Depois de haver morto Abel, Caim se retira para um país distante, no qual encontra homens, casa-se e funda uma cidade. Coisa é essa que gravemente afeta a narrativa da Criação e a teoria da unidade de origem das raças humanas.
Deuteronômio – Tomemos agora em consideração este quinto livro do Antigo Testamento. Diz o capítulo I, v. 1, que é ele obra de Moisés. Nisso há um primeiro exemplo dessas piedosas fraudes que consistiam em publicar um escrito sob o nome de um autor respeitável para lhe dar maior autoridade. Somos informados da origem desse livro pela narrativa dos Reis, II, XXII, vv. 8 e 10. Foi achado no templo, sob o reinado de Josias, um dos últimos reis de Judá, cinco séculos depois de Moisés, numa época em que o astro da dinastia de Judá já se inclinava para o ocaso. O verdadeiro autor o tinha evidentemente colocado no templo, a fim de que fosse descoberto e apresentado ao rei, piedoso homem, que tomou o livro a sério, acreditou que provinha de Moisés e empregou toda a sua autoridade no sentido de aplicar as reformas nele reclamadas. Os judeus achavam-se então engolfados na idolatria; os preceitos do Decálogo de tal modo estavam esquecidos que o autor do Deuteronômio, um reformador bem intencionado, tendo-se proposto recordá-los, provocou um verdadeiro temor nos espíritos e conseguiu fazer aceitar o seu livro como uma nova revelação.
Observemos, a esse respeito, no Deuteronômio, cap. XXVIII, que as sedutoras promessas e as aterradoras ameaças com que se esforça o autor pelo restabelecimento do culto a Jeová se referem exclusivamente à vida terrestre, parecendo não possuir noção alguma da imortalidade.
A mesma coisa se dá com o Pentateuco, conjunto de obras atribuídas a Moisés. Em lugar algum o grande legislador judeu, ou os que falam em seu nome, faz menção da alma como entidade sobrevivente ao corpo. Na sua opinião, a vida do homem, criatura efêmera, se desdobra no acanhado círculo da Terra, sem perspectiva aberta para o céu, sem esperança e sem futuro.
Na maior parte, os outros livros do Antigo Testamento não falam do futuro do homem senão com a mesma dúvida, com o mesmo sentimento de desesperadora tristeza.
Diz Salomão (Eclesiastes, III, vv. 17 e seguintes):
“Quem sabe se o espírito do homem sobe às alturas? Meditando sobre a condição dos homens, tenho visto que é ela a mesma que a dos animais. Seu fim é o mesmo; o homem perece como o animal; o que resta de um não é mais do que o que resta do outro; tudo é vaidade”.[iv]
É então isso a “palavra de Deus”? Pode-se admitir que ele tenha deixado ao seu povo predileto ignorar os destinos da alma e a vida futura, quando esse princípio essencial de toda doutrina espiritualista era, havia muito tempo, familiar na Índia, no Egito, na Grécia, na Gália?
A Bíblia estabelece como princípio o mais absoluto monoteísmo. Nela não se trata da Trindade. Jahveh reina sozinho no céu, zeloso e solitário. Mas Jahveh primitivamente não é mais que um deus nacional, oposto às divindades cultuadas pelos outros povos. Só mais tarde os hebreus se elevam à concepção desse Poder único, supremo, que rege o Universo. Os anjos não se mostram senão de longe em longe, como mensageiros do Eterno. Não há lugar algum para as almas dos homens nos céus tristes e vazios. No ponto de vista moral, Deus é apresentado na Bíblia sob aspectos múltiplos e contraditórios. Dizem-no o melhor dos pais e fazem-no desapiedado para com os filhos culpados. Atribuem-lhe a onipotência, a infinita bondade, a soberana justiça, e rebaixam-no até ao nível das paixões humanas, mostrando-o terrível, parcial e implacável. Fazem-no criador de tudo o que existe, dão-lhe a presciência e, depois, apresentam-no como arrependido da sua obra:
Gênesis, cap. VI, vv. 6 e 7: “Ele se arrependeu de ter feito o homem na terra e teve por isso um grande desgosto em seu coração.”
E diz o Eterno: “Eu exterminarei da face da terra os seres que criei, desde os homens até os animais, até tudo o que se roja pelo chão, e até os pássaros dos céus, porque me arrependo de os haver criado.”
Só Noé e sua família encontraram graça diante do Eterno. Em que se tornam, depois dessa narrativa, a previdência e o poder divino?
Assinalemos entretanto: a noção da Divindade se vai depurando à medida que evolve o povo. Os profetas, indivíduos inspirados, reprovam, em nome do Senhor, os sacrifícios cruentos, primeiras homenagens dos hebreus a Jahveh; condenam o jejum e os sinais exteriores de humilhação, nos quais o pensamento não tem a menor intervenção.
“Quando me ofereceis os holocaustos de vossas rezes pingues, não me dais prazer algum”, exclama o Eterno pela boca de Amós. “O que exijo é que a retidão seja como uma água que transborda, e a justiça como uma torrente impetuosa”.[v]
“Não jejuais como convém – escreve Isaias, – Curvar a cabeça como um junco e fazer cama de saco e de cinza, chamaras tu a isso o jejum agradável ao Senhor? Mas o jejum que me agrada é antes este: Rompe as ligaduras da maldade; desata os laços da servidão, deixa ir livres os oprimidos; reparte o teu pão com o que tem fome e introduze em tua casa os infelizes e os peregrinos; dá de vestir aos nus e não desprezes os teus semelhantes, e então romperá como a aurora tua luz, a justiça irá diante de tua face e a glória do Eterno te acompanhará”.[vi]
“O que o Senhor requer de ti – diz Miquéias – é que pratiques a justiça, que ames a misericórdia e que andes humildemente com o teu Deus”.[vii]
Em sua obra intitulada Em torno de um livrinho, respondendo às criticas suscitadas pelo seu trabalho sobre o Evangelho e a Igreja, externa o abade Loisy a opinião de que, em seu conjunto, não têm os livros do Antigo Testamento outro objetivo além da instrução religiosa e edificação moral do povo. “Nele se desconhece a exatidão bibliográfica – acrescenta; – a preocupação do fato material e da história objetiva brilha pela ausência.”
É também essa a minha opinião. Daí segue que não poderia a Bíblia ser considerada “a palavra de Deus” nem uma revelação sobrenatural. O que se deve nela ver é uma compilação de narrativas históricas ou legendárias, de ensinamentos sublimes, de par com pormenores às vezes triviais.
Parece, em certos casos, se inspirarem os autores do Pentateuco em revelações mais antigas, como o faz notar Swedenborg, com provas em apoio. Os iniciados encaram o Antigo Testamento como puramente simbólico e nele pensam descobrir todas as verdades por meio da Cabala. Somos também de opinião que o pode revestir a forma de um símbolo. Do mesmo modo que aí vemos a preparação do povo hebreu para o advento do Cristianismo, sob a direção de Moisés e dos profetas, aos quais se mostra ele às vezes tão rebelde, pode igualmente esse livro representar-nos a marcha ascensional do espírito humano para a perfeição, a que o conduzem os Espíritos superiores de um e do outro mundo.
O Antigo Testamento parece destinado a servir de laço entre a raça semítica e a ariana. Jesus, com efeito, não parece mais ariano que judeu? Sua infinita mansidão, a serena claridade de seu pensamento não estão em oposição com os rígidos, com os sombrios aspectos do Judaísmo?
Essa obra não remonta a tão antiga data como se tem de bom grado feito crer. Foi em todo caso retocada mais ou menos tempo depois da volta da Babilônia, porque nela a espaços se encontram alusões ao cativeiro dos judeus nesse país.[viii] É bem a obra dos homens, o testemunho da sua fé, das suas aspirações, do seu saber, e também dos seus erros e superstições. Os profetas nela consignaram a palavra vibrante que lhes era inspirada; videntes, descreveram as imagens das realidades invisíveis que lhes apareciam; escritores, delinearam as cenas da vida social e os costumes da época.
Foi com o intuito de dar a esses ensinos tão diversos maior peso e autoridade, que foram eles apresentados como emanados da soberana potência que rege os mundos.
 
[i]    Cap. III, 22.
[ii]   XIX, 3.
[iii]   Daniel, V, 11.
[iv]   “Tudo é nada” diz o texto hebraico.
[v]    "Amós" V, 22, 24.
[vi]   "Isaías", LVIII, 4-8.
[vii] “Miquéias”, VI, 8.
[viii] Cerca do ano 700 antes da nossa era.
[ii] Nota 3:
Sobre a autenticidade dos Evangelhos
Um atento exame dos textos demonstra que, em meio das discussões e das perturbações que agitaram, nos primeiros séculos, o mundo cristão, não se hesitou, para aduzir argumentos. em desvirtuar os fatos, em falsear o verdadeiro sentido do Evangelho. Celso, desde o século II, no Discurso verdadeiro, lançava aos cristãos a acusação de retocarem constantemente os Evangelhos e eliminarem no dia seguinte o que havia sido inserido na véspera.
Muitos fatos parecem imaginários e acrescentados posteriormente. Tais, por exemplo, o nascimento em Belém, de Jesus de Nazaré, a degolação dos inocentes, de que a História não faz menção alguma, a fuga para o Egito, a dupla genealogia, contraditória em tantos pontos, de Lucas e Mateus.
Como, também, acreditar na tentação de Jesus, que a Igreja admite nesse mesmo livro em que acredita encontrar as provas da sua divindade? Satanás leva Jesus ao monte e lhe oferece o império do mundo, se ele lhe quiser prestar obediência. Se Jesus é Deus, poderia Satanás ignorá-lo? E, se conhecia sua natureza divina, como esperava exercer influência sobre ele?
A ressurreição de Lázaro, o maior dos milagres de Jesus, é unicamente mencionada no quarto Evangelho, mais de 60 anos depois da morte do Cristo, ao passo que as suas menores curas são citadas nos três primeiros.
Com o quarto Evangelho e Justino Mártir, a crença cristã efetua a evolução que consiste em substituir à idéia de um homem honrado, tornado divino, a de um ser divino que se tornou homem.
Depois da proclamação da divindade do Cristo, no século IV, depois da introdução, no sistema eclesiástico, do dogma da Trindade, no século VII, muitas passagens do Novo Testamento foram modificadas, a fim de que exprimissem as novas doutrinas (Ver João, I, 5,7). “Vimos, diz Leblois,[i] na Biblioteca Nacional, na de Santa Genoveva, na do mosteiro de Sannt-Gall, manuscritos em que o dogma da Trindade está apenas acrescentado à margem. Mais tarde foi intercalado no texto, onde se encontra ainda.”
 
[i]    As bíblias e os iniciadores religiosos da humanidade, por Leblois, pastor em Strasburgo.
[iii]   A obra de S. Jerônimo foi, efetivamente, mesmo em sua vida, objeto das mais vivas críticas; polêmicas injuriosas se travaram entre ele e seus detratores.
Autor: Léon Denis
Fonte: Cristianismo e Espiritismo
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