III
Carlos Lobo d’Avila.
Foi Jornalista, orador, político e ministro de raras faculdades. Arguto, ambicioso, audaz como ninguém; servido por uma inteligência diamantina, teria sido um vulto de grandeza excepcional se não morresse aos 33 anos de Idade.
Não sei se é ainda saudade o sentimento que me prende à Terra. Cheio de ambições, e sentindo em mim fogo e forças para realizá-las, parti daí, inopinadamente, quando tudo tendia à realização dessas ambições.
Custou-me muito. A vida aí tinha, para mim, bem mais encantos do que aquela a que fui magicamente transplantado. Sem preparação espiritual para a transformação que se ia operar, colhido de surpresa, em pleno triunfo das minhas douradas ilusões, caí de chofre, pesadamente, desamparadamente, numa situação que não esperava, que não desejava e em que talvez nem sequer cria. Vagueei, vagueei, por esses espaços fora, isolado no meu desespero, recusando consolação, como um degredado inocente nas inóspitas regiões a que a cegueira da Justiça o conduzisse, arrancando-o, para isso, brutalmente, do convívio dos entes que lhe enchiam a vida, e das aspirações que lhe aqueciam a alma.
Pouco a pouco fui-me conformando e habituando também a uma nova situação, de que não via possibilidade próxima de fugir. Disse adeus aos encantos que deixava na Terra, às esperanças que jamais realizaria, e comecei a estudar o novo modo de ser da minha individualidade, procurando criar em mim estímulos para resignar-me e para buscar uma posição que permitisse, mais facilmente, o olvido daquela que, involuntariamente, deixava.
A cada momento as saudades e as tristezas obrigavam-me a percorrer as regiões terrenas, rememorando em cada sítio uma angústia ou uma alegria, uma dor ou um prazer. Passava por junto dos meus companheiros e amigos, a quem dizia palavras de ternura e de amizade; chorava, gritava, mas ninguém me ouvia.
Procurava colocar-me de frente com as pessoas em que, por motivos especiais, pudesse mais facilmente impressionar os sentidos ou a retina; mas não conseguia que me vissem. O mais que conseguia, por vezes, era atuar, sensivelmente, sobre o cérebro de alguma pessoa mais predisposta a receber a impressão da minha lembrança; e tive muitas vezes o prazer de constatar que essa lembrança era motivo de agras e doloridas saudades, ao mesmo tempo que, muitas outras vezes, sentia sincera dor ao ver que ela era acolhida com manifestação de alívio e de prazer pelo meu desaparecimento. E, em regra, não eram os meus inimigos os que mais felizes se sentiam pela minha morte...
Que de coisas se deparam à nossa vista espantada, quando, pela libertação da matéria, temos a faculdade de conhecer a verdade em todos os indivíduos que na Terra nos incensam e rodeiam!
É esse um grande e inolvidável suplício, de que só escapam aqueles a quem a Terra foi madrasta, e que dela vêm com poucos desejos de querer conhecer a impressão que a sua partida aí deixou. Eu vim demasiadamente criança e demasiadamente iludido, para que não tivesse a vaidosa pretensão de a querer saber; e isso foi, talvez, o mais amargurado martírio de todos a quantos minha alma tem sido submetida! Que de coisas ouvi, santo Deus; que coisas se disseram sem se pensar, e quantas se pensaram que se não disseram!
Habitualmente, quando desencarnamos e o nosso espírito deixa a perturbação desse momento supremo (perturbação que às vezes não chega a dar-se, mas que, outras vezes, se prolonga por largo espaço de tempo, conforme o grau de espiritualidade da pessoa que passou), desenrola-se ante a nossa vista espantada, como em um imenso ciclorama toda a nossa vida terrena. Quer queiramos quer não, tudo ali vai correndo irresistivelmente, friamente, como em uma execução sumária; e dessa rememoração fantástica, bela por vezes, mas por vezes horrorosamente trágica, tiramos a impressão, que se grava na nossa psicologia, e nos faz sofrer ou gozar, conforme a natureza dessa impressão recebida.
A minha não foi coisa que me atormentasse. Novo, dominado pela ambição e pela política, não tive muitos ensejos de fazer o mal de que me temesse, conquanto também os não tivesse de fazer muito de bem que me servisse. Situação anódina, servida por uma inteligência mais viva e desimpedida de que quando me achava no mundo.
Reconheci que tinha errado o meu caminho na Terra; e, tarde, reconheci também que a posição em que me encontrava não era digna de ser servida pela inteligência que Deus me havia dado. Entrei, por isso, a afligir-me com o contraste da posição invejada e invejável, de incontestada preponderância, que acabava de deixar, com aquela, apagada, despida de importância e de interesse, em que me via mergulhado.
Cheguei a lamentar que nem o bem nem o mal me houvessem impulsionado aí, poderosamente, à conquista de uma posição definida e em evidência depois da morte. Para mim não havia coisa pior nem mais desagradável, do que a situação subalternizada a que me via reduzido, quando, pouco antes, havia sonhado a dominação e a grandeza.
Dias sucessivos de amarguradas reflexões, e de não menos amarguradas desilusões em muitas dessas vãs miragens, que me haviam encantado a vista e deslumbrado o cérebro, na Terra, começaram a dar-me um pouco de serenidade e conformação; e, presentemente, não sei bem se é saudade, se tristeza o sentimento que me domina ao escrever para esse mundo, de onde me julgava definitivamente sequestrado.
Perdi o gosto pelas coisas daí, e não sei qual seria a resposta que daria, se fosse possível a um poder superior oferecer-me a escolha entre a situação brilhante em que desencarnei, e a situação apagada e modesta em que me encontro.
Venho vendo que tudo aí é efêmero e fictício; que as alegrias têm a duração das rosas de Malherbe e as tristezas são o fundo positivo de todas as alegrias. Nada há de mau senão o sofrimento; e se eu não lhe conheci bem o travor amargo, no curto lapso de tempo em que perpassei pela Terra, compensadoramente conheci-o bem, depois, quando a visão nítida da verdade me deixou apreciar a doblez e a hipocrisia, que eu tomava por admiração e amizade. Presumia conhecer os homens bem, mas enganava-me. Conhecia-os tão somente nas suas aparentes manifestações; e só o tempo me daria a faculdade de lhes ler bem no fundo da sua alma de hetaira. Consegui rápida aura de poder, porque circunstâncias várias e poderosas me impeliram à evidência e à dominação; e quando saí, ainda aqueles sobre quem eu dominava se não tinham refeito da impressão de assombro e de subserviência, de que se é tomado, quando encontramos em nosso caminho alguém suficientemente ousado para se nos impor. E’ possível que a minha preponderância se radicasse, como também era possível que as primeiras desilusões e os mais acerbos desgostos me trouxessem a reflexão, a timidez, e, por conseguinte, o abandono das posições conquistadas.
A audácia é, muitas vezes, filha da ignorância; e eu não podia conservar-me por muito tempo ignorante sobre qualquer coisa em que me interessasse.
Podia, muito bem, falar-te de outro assunto; mas, regra geral, nós falamos, em primeiro lugar, daquilo que mais nos impressiona, se nos deixam livre a escolha. Ora, o que mais me impressionava era a minha situação atual, na sua respectiva relação com a situação terrena que deixei. E daqui o falar de mim em primeiro lugar.
Creio, porém, que o que de mim digo não é de todo destituído de interesse para os outros nem para ti. Para os outros, porque da minha vida tirarão exemplo para nortearem a sua vida, de modo a não caírem no marasmo indiferente e quase anônimo, em que eu aqui estou, a despeito das minhas inegáveis faculdades de inteligência, de trabalho, de habilidade e argúcia, que me davam aí o savoir vivre, que foi o principal propulsor do meu engrandecimento; e para ti, porque quem me conheceu e leia estes desabafos póstumos, conhecerá otimamente a minha personalidade através do instrumento de que me sirvo para manifestar-me.
A quem horrorize a inatividade forçada e a vida obscura das criaturas medíocres, direi que há só um meio de evitá-la: — é fazer o bem ou fazer o mal. Nada de meios termos.
Coisa que se veja.
O bem conduzir-nos-á a regiões de luz, de trabalho e de felicidade, onde Deus permite a cada um dos seus filhos independência, trabalho e gozo. O mal conduz-nos fatalmente às regiões escuras do sofrimento e da dor, e cria-nos situações que nos permitem livremente o exercício da maldade e da perversão, na ânsia tentadora de perder os outros, de destruir felicidades, de aniquilar alegrias e de perverter as almas cândidas e simples.
Sofre-se, mas trabalha-se; faz-se o mal, mas apura-se a inteligência, domina-se e chega-se a ser respeitado e temido.
Ora, o fazer-se mal ou fazer-se bem, aqui, não depende tanto da nossa vontade e do nosso querer, como da preparação que para isso trouxermos da Terra.
Essa preparação, onde estou, é difícil de adquirir, como a que daí se traz é difícil de contrariar e corrigir.
Quem queira, pois, ser alguém depois de daí vir, escolha a situação que deseje, e ponha em ação todos os esforços e toda a persistência para consegui-la. Não perca tempo com frioleiras, e quando se dedique com amor, e encarniçadamente, às coisas terrenas e mundanas, não se esqueça, nas horas vagas, de ir fazendo o bem ou o mal ao próximo, como quem prepara as malas com as coisas que melhor deseje, para conforto e prazer, ao termo de longa viagem que tenha de efetuar.
Quando mesmo não creia muito na imortalidade, não deixe de preparar-se, como qualquer pessoa de juízo se preparará, ao embarcar no melhor transatlântico, com um bom cinto de salvação. Não lhe faz mal e é um refúgio, uma esperança, na hipótese possível de um naufrágio.
Preparar-se para esta vida, mesmo que se não creia nela, não faz mal nenhum.
Se, afinal, ela não existir, pouco perderá e não chegará a conhecer da perda; e se ela existir será causa de felicitação, por ter-se prevenido a tempo, com algumas das coisas que melhor lhe agradarem.
Não esquecer nunca que a vida aqui é a consequência e o produto da vida daí; e que inteligência viva e notável a alumiar uma alma incompleta, imperfeita e medíocre, é como uma luz brilhante a Iluminar um deserto estéril e improdutivo.
Autor: Fernando de Lacerda - Do País da Luz
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