Estudo da Memória
Estudo da memória
Acreditamos de nosso dever estudar a memória e procurar explicar o seu funcionamento, pois ela é o fulcro da vida mental, contribuindo para fundar a personalidade, e, se bem conhecermos todas as modalidades dessa faculdade, poderemos compreender por que não guardamos a lembrança de pretéritas encarnações. Entrementes, como lhe cabe o papel mais importante no caso da personalidade dupla e nos diferentes estados de sonambulismo provocado, o seu conhecimento aprofundado tem para nós o maior interesse. Vamos, portanto, ver, sumariamente, os principais fenômenos que a caracterizam.
A memória orgânica ou inconsciente fisiológico
Na acepção comum do vocábulo, a memória compreende, para toda a gente, três coisas, a saber: a conservação de certos estados, sua reprodução e sua localização no passado.
Na velha psicologia, só o terceiro termo constituía a memória, mas nós pudemos comprovar a obrigação indeclinável de admitir o inconsciente, isto é, as lembranças não mais percebidas pelo eu normal, e que, no entanto, subsistem. Nesta categoria podemos colocar todos os atos funcionais do sistema nervoso, devidos às fixações seculares de movimentos do perispírito.
O instinto, dizem, é ato hereditário específico, e isso implica a existência de uma memória hereditária, memória orgânica, que sabemos residir no perispírito. Vamos uma vez mais demonstrar o mecanismo dessa operação:
1º – Há na vida orgânica, primariamente, fenômenos automáticos dependentes da vida em si mesma e que começam e acabam com ela. São os movimentos do coração e os respiratórios.
2º – Em seguida, temos toda uma série de ações reflexas, que se engendram sucessivamente, formando uma continuidade ininterrupta. O melhor tipo a apresentar, desses reflexos, é o conjunto dos fenômenos da digestão – quando, na boca, o alimento provoca deglutição e, a partir desse momento, vai produzir-se uma série de ações reflexas e progressivas no tubo digestivo, com a dissolução do alimento pelos líquidos orgânicos.
Toda a série de atos, mecânicos ou químicos, da digestão, são a conseqüência do movimento inicial da deglutição, e os reflexos se encadeiam uns aos outros, provocam novas excitações determinantes de novos atos, até que a digestão se complete.[i]
3º – Uma excitação exterior provoca movimentos reflexos de reação, que colimam uma adaptação melhor do ser vivente ao seu meio, seja por defender-se, fugir ou buscar. Definamos essas ações, hoje inconscientes, mas primitivamente voluntárias e tornadas instintivas, por efeito de repetições inumeráveis.
Se decapitarmos um pássaro e o lançarmos no espaço, vê-lo-emos voar até que se lhe esgotem as forças. A memória do movimento instintivo das asas fora-lhe conservada na medula espinhal. Porcos-da-Índia a que se extraem os lóbulos cerebrais saltam, caminham, tremem, quando excitados.
A substância parda da medula alongada preside a umas tantas contrações musculares, coordenadas, independentes da vontade e que, muitas vezes, não chegam à consciência. Um rato, privado dos hemisférios cerebrais, dá um salto brusco se dele nos aproximarmos imitando o miar do gato. Não há nisso um julgamento, é bem certo, mas um ato instintivo, irresistível. Decorridos milênios, aquele ruído teve como resultado determinar a fuga sem reflexão prévia; a ocorrência desse ruído está de tal maneira associada à idéia do perigo que, em se produzindo, o animal foge sem reflexão, incoercivelmente. Não há raciocínio nem consciência, é puro reflexo. O mesmo se passa em cães e gatos, que, privados dos lóbulos cerebrais, apertam os lábios como para se desembaraçarem de uma sensação desagradável, como se lhes houvéssemos ministrado uma decocção de colocíntida. São sensações inconscientes hoje, mas percebidas outrora.[ii]
4º – Também se produzem conjuntos de movimentos musculares pela simples ação da vontade, e que requerem quantidade enorme de ações reflexas apropriadas, a revelarem uma perfeita técnica orgânica, inteiramente desconhecida do espírito.
“Muitas vezes – diz o Dr. Despines – admirei essa ciência automática, ao contemplar o cão que segue a carruagem do dono, a saltar adiante dos cavalos, a passar por entre as rodas, e tudo isso com destreza gradativa e adequada, sem jamais se deixar colher pelas rodas ou pelas patas dos cavalos.
“Que matemática precisão muscular não se impõe à execução de todos esses movimentos! E dizer que tudo isso se executa sem que o deseje o animal, e sem que o saiba como! No homem, essa ciência automática revela-se ainda mais maravilhosa.
“Os músicos de cerebelo imperfeito jamais poderão executar uma partitura da maneira por que a sentem. Homens há, muito inteligentes e inábeis, ao passo que outros, de inteligência medíocre, possuem grande habilidade. Para ser bom peão, bom ilusionista, equilibrista ou atirador, basta possuir inteligência comum, mas não há que dispensar órgãos automáticos perfeitos. Não é a forma da mão que dá a destreza, pois que mão e dedos não passam de instrumento operatório.” [iii]
O verdadeiro tipo da memória orgânica deve ser procurado naquele grupo de fatos que Hartley, com tanta felicidade, denominara ações automáticas secundárias, em oposição aos atos automáticos inatos. Estas ações secundárias, ou movimentos adquiridos, constituem o fundo mesmo da nossa vida diurna. Assim, a locomoção, que, em muitas espécies inferiores, é um poder inato, no homem tem de ser adquirida, particularmente no que diz com essa capacidade de coordenação que mantém o equilíbrio a cada passo, graças à combinação das impressões táteis e visuais.[iv]
De modo geral, pode dizer-se que os membros e órgãos sensoriais do adulto não funcionam tão facilmente, senão mercê de movimentos adquiridos e coordenados, que constituem, para cada parte do corpo, sua memória especial, o capital acumulado de que vive e mediante o qual age, tal como, das suas passadas existências, age e vive o espírito.
À mesma ordem pertencem os grupos de movimentos de feição artificial, que constituem o aprendizado de um ofício manual, jogos de destreza, exercícios ginásticos, etc.
Examinando-se como se adquirem, se fixam e se reproduzem esses movimentos automáticos primitivos, vê-se que o seu primeiro trabalho é o de formar associações. A matéria primária é fornecida pelos reflexos primitivos, isto é, pelos movimentos nervosos inconscientes, que temos estudado no capítulo anterior. Trata-se de os agrupar de certa maneira, de combinar uns com exclusão de outros.
Por vezes, esse período de formação não é mais que um longo tateamento. Os atos que nos parecem hoje tão fáceis e naturalíssimos foram, originariamente, adquiridos com grande e penoso esforço.
Com os movimentos automáticos secundários vemos reproduzir-se o que ocorreu com os primeiros movimentos automáticos do perispírito. Impõem-se uma aprendizagem, ensaios numerosos e reiterados, antes que o organismo fluídico adapte aos novos os seus antigos movimentos.
Quando a criança aprende a escrever, diz Lewes, é-lhe impossível mover a mão por si mesma. Vemo-la, então, contrair a língua, os músculos faciais, mover os pés, etc. Esses trejeitos acabam por suprimir-se com o tempo. Tornam-se inúteis. Todos nós, quando ensaiamos pela primeira vez um ato muscular, despendemos grande quantidade de energia supérflua, que gradualmente aprendemos a restringir ao necessário. Com o exercício, os movimentos apropriados fixam-se, excluindo outros. Formam-se no perispírito movimentos secundários que, associando-se aos movimentos motores primitivos, se tornam mais ou menos estáveis, conforme a maior ou menor repetência dos mesmos atos. E, se estes forem reiterados a ponto de adquirirem rapidez sempre crescente, chegam a utilizar um tempo tão curto que ultrapassa o mínimo exigido para que o esforço seja perceptível, tornando-se o ato, assim, inconsciente.
Não diremos, pois, com Ribot, que a consciência é um fenômeno de superadição, visto que ela é a causa organizadora desses movimentos, e não desaparece da série senão quando se torna inútil e o ato corresponde perfeitamente ao seu objetivo.
É fácil constatar, pela observação, que a memória orgânica que nos aproveita na caminhada, na dança, na natação, equitação, patinagem, dedilhação de instrumentos, etc., em tudo se assemelha à memória psicológica, salvo num ponto – a isenção da consciência.
Sumariando-lhe os caracteres, surgirá a perfeita similitude das duas memórias.
Aquisição ora imediata, ora lenta, repetência do ato, necessária em uns e inútil em outros casos.
Desigualdade de memória orgânica, conforme as pessoas: temo-la rápida em uns e lenta ou refratária em outros (a inépcia é resultante de ruim memória orgânica).
Em uns, as associações, uma vez formadas, permanecem; noutros, há propensão de as perder, ou esquecer.
Disposição destes atos em séries simultâneas ou sucessivas, como para as lembranças conscientes.
Aqui mesmo, um fato digno de nota é que cada membro da série sugere o conseqüente, como sucede quando caminhamos, inconscientes de o estar fazendo. Sabe-se que, adormecidos, soldados de infantaria e cavalaria prosseguem a marcha, ainda que os últimos hajam de manter-se em constante equilíbrio. Essa sugestão orgânica torna-se ainda mais frisante no episódio citado por Carpenter – o do pianista exímio que executa, dormindo, um trecho musical, o que ele atribui menos ao sentido auditivo que ao muscular, sugerindo a sucessão dos movimentos.
Sem recorrer a casos extraordinários, encontramos em nossos atos diuturnos séries complexas e bem determinadas, isto é, cujos começos e fins são fixos, e cujos meios, diferentes uns dos outros, se sucedem em ordem constante, como seja no subir ou descer uma escada, depois de um longo hábito.
A memória psicológica ignora o número de degraus e a memória fisiológica conhece-o, à sua maneira, tanto quanto a divisão dos andares, a distribuição dos patamares e pormenores outros, de sorte a jamais se enganar.
Não será, então, lícito dizer que estas séries bem definidas são, para a memória orgânica, o que para a memória psicológica sejam uma frase, uma quadra poética, uma ária musical?
Examine-se uma prancha anatômica e ver-se-á que, para produção do movimento, entra em jogo uma porção considerável de elementos nervosos, diferenciados entre si, tanto pelas formas variadas, como por sua constituição anatômica.
As células do córtex cerebral, da medula, dos nervos são fusiformes, gigantes, piramidais, etc.; os nervos motores diferem dos sensitivos e estes, por sua vez, dos músculos: pois, se bem nos lembrarmos de que cada um desses elementos concorrentes à realização de um movimento jamais são utilizados duas vezes na vida, e que guardam, entre si, relações íntimas das quais depende a conservação dos movimentos automáticos secundários, então, mais que nunca, reconheceremos a utilidade do perispírito.
Esses estudos da memória inconsciente e existente no sistema nervoso tornar-se-iam incompreensíveis sem a noção da alma com o seu envoltório fluídico, pois de outro modo haveria que atribuir à matéria organizada uma série de consciências, e isso é inteiramente impossível, visto termos a prova de que essa consciência existe fora de toda a matéria viva.
Esse fato, bem verificado, estabelece o papel da alma no corpo e mostra que a fisiologia não faz mais que evidenciar as propriedades do perispírito, que se manifestam tangíveis pelas propriedades do sistema nervoso.
Em suma, temos podido ver as transições insensíveis que religam a consciência à inconsciência, nos fenômenos psíquicos; comprovamos que, para tornar-se despercebida uma sensação, concorrem duas causas, ou seja, insuficiência de intensidade e curteza de tempo.
A mesma coisa se dá, qual o vimos, com os fenômenos fisiológicos, que denominamos memória orgânica, de sorte que o inconsciente é um território comum da alma e do corpo, confirmando-se, assim, que o perispírito é a sua sede.
A memória psíquica
No registro da sensação reside, portanto, o fenômeno da memória.
Tendo visto como se dá a fixação no perispírito, resta-nos demonstrar onde se opera e localiza essa impressão.
Como de costume, guiar-nos-emos pelo sistema nervoso, que é a forma objetiva dos estados perispirituais.
Já assinalamos a estreita relação que existe e prende a alma ao corpo. Durante a incorporação, toda a manifestação intelectual exige, imperiosamente, o concurso do corpo, a integridade absoluta da substância cerebral; de sorte que as mínimas desordens do cérebro paralisam completamente as manifestações da alma. Bem refletindo, essa concomitância não é surpreendente à face da nossa teoria. Desde que o Espírito não atua sobre a matéria senão mediante a força vital, qualquer destruição de matéria nervosa subtrai, passageira ou definitivamente, uma parte correspondente da força vital ligada a essa parte e, desde então, o perispírito, que conserva o movimento, não mais pode agir, à falta do seu agente de transmissão. Mais tarde, dado que a força vital seja ainda eficiente para reconstituir os tecidos, a função se restabelecerá.
Eis alguns exemplos demonstrativos de localização da memória:[v]
Perda da memória auditiva das palavras faladas, ou surdez verbal – Um doente, acometido de apoplexia, restabelece-se mais ou menos completamente da paralisia, mas, na opinião dos que o assistem, parece ter ficado surdo e mentecapto, de vez que responde desconexamente às perguntas que lhe fazem, como se não compreendesse a conversação.
E, contudo, um exame metódico atestará que esse enfermo não é surdo nem idiota. Não é surdo, porque se volta ao ruído da janela batida pelo vento, e mesmo ao rumor insignificante de um alfinete, ao cair no assoalho. Mais: impacienta-se ao ver que não compreende o que lhe dizem. Não é idiota, pois, se fala, exprime-se corretamente; se lê, responde com acerto às perguntas escritas. Que é que lhe falta?
Falta-lhe a compreensão da linguagem falada. Ouvindo o seu próprio idioma, age como se ouvisse linguagem estranha. Esse idioma, aprendera-o ele, como todos nós, por uma educação lenta, o que vale por dizer que se habituara a ligar uma idéia a um som. Esse mecanismo fixara-se nele, e o que agora lhe falta é precisamente esse mecanismo, que a enfermidade destruiu. Nesses doentes, autopsiados, nota-se, com efeito, sempre a mesma lesão: foi atingida a primeira circunvolução temporal. Podemos, pois, estimar como sendo essa circunvolução a sede da memória auditiva verbal.
Perda da memória das palavras escritas, ou cegueira verbal – Atacado de apoplexia no hemisfério cerebral esquerdo, o indivíduo fica hemiplégico, paralítico dos membros do lado direito. Essa paralisia foi, entretanto, passageira; o doente levantou-se e não apresenta qualquer distúrbio oral ou auditivo. Trata-se de um negociante preocupado com a interrupção dos seus negócios e que, não podendo ainda sair de casa, quer dar uma ordem por escrito. Toma da pena e escreve legível, mas julga que lhe escapou qualquer coisa; e, por isso, recomeça.
Nessa altura, revela-se, em toda a sua originalidade fantástica, o seguinte fenômeno: o homem pôde escrever, mas não pode ler o seu escrito! Impacientado, desejoso de repetir a experiência, recorre aos seus registros e também não consegue lê-los, nem compreender o que eles dizem. Tudo se passa como se ele estivesse a escrever no escuro. Conservou os movimentos manuais, assina o nome com facilidade, mas não pode, em seguida, distinguir sua firma da de outrem. As letras que acabou de traçar são-lhe tão significantes como se foram caracteres chineses, ou equivalentes.
Que perdeu, então, esse enfermo? Não foi a palavra, nem a audição dela, nem os movimentos da escrita, e sim o conhecimento visual dos caracteres da linguagem escrita. Habituara-se, da infância, a armazenar no cérebro a lembrança, as imagens visuais das letras, de feição a retê-las e reconhecê-las, ao mesmo tempo em que armazenava a lembrança dos movimentos da escrita. Ora, conservando a lembrança dos movimentos da escrita e perdendo a memória visual, é claro que foi ferido de cegueira verbal. Pela autópsia, constata-se a lesão na segunda circunvolução parietal do hemisfério esquerdo.
Perda da memória motriz das palavras verbais – Os doentes desta categoria compreendem o que ouvem, escrevem, lêem, têm mímica expressiva, mas não podem pronunciar regularmente as palavras. Algumas, quase sempre monossilábicas, ou ditos familiares, é tudo o que lhes resta, e desse tudo servem-se eles a todo propósito, como a criança de vocabulário ainda incipiente.
O poeta Baudelaire, atacado de afasia (afásicos são chamados estes enfermos) apenas podia dizer cré nom! Essas criaturas perderam a memória complexa dos movimentos da laringe e da língua para a expressão verbal, desapareceu-lhes a memória motriz das palavras articuladas. Desorganizou-se-lhes a terceira circunvolução frontal esquerda.
Perda da memória motriz das palavras escritas – A hemiplegia direita manifesta-se em conseqüência da lesão do hemisfério esquerdo. O enfermo se restabelece em poucos meses, fala, ouve, lê e apenas uma coisa o perturba e preocupa, posto movimente e utilize com facilidade a mão direita para vestir-se, alimentar-se, etc. É que ela se recusa, absolutamente, a executar os movimentos da escrita. Quando o enfermo tenta fazê-lo, não consegue esboçar sequer uma letra. Diz conhecer perfeitamente os caracteres a traçar, nomeia-os, aponta-os num jornal, mas... não pode escrevê-los. O mais curioso é que o doente pode segurar a pena ou o lápis e até desenhar. Apresentem-lhe uma palavra escrita, ele a copiará lenta, laboriosamente, qual o faríamos com um idioma estranho. É que ele perdeu apenas a memória dos movimentos da escrita e essa perda coincide com a lesão da segunda circunvolução frontal esquerda.
Acabamos de apontar destruições pertinentes a toda uma categoria de fatos. Trata-se do desaparecimento de uma série de movimentos associados e coordenados, interessando à memória auditiva da palavra falada, à memória visual da palavra escrita, ou à memória motriz da palavra falada ou escrita; e, assim, podemos localizar no cérebro as partes atingidas, determinantes dessas supressões. Não são estas, contudo, as únicas localizações estudadas e conhecidas. Vejamos, ainda, alguns exemplos dessas perdas em bloco:
1º) Perda do sentido fisionômico – Notável cientista muito meu conhecido – diz Carpenter – perdeu a memória fisionômica. Tinha ele 70 anos, quando nos reencontramos, certa feita, em casa de outro velho amigo comum. Não me reconheceu à entrada, nem à saída; mais tarde, a memória foi-se-lhe apagando, até que sucumbiu a um ataque de apoplexia.
2º) Perda do sentido musical – Uma criança – é ainda o mesmo doutor quem o diz –, depois de forte traumatismo cerebral, ficou três dias desacordada. Ao voltar a si, tinha esquecido tudo quanto sabia de música. Só de música, bem entendido.
3º) Perda de todos os números – São casos freqüentemente observados nas lesões do cérebro. Um frio excessivo pode acarretar o mesmo resultado. Sabe-se de um viajante que, por muito tempo exposto ao frio, perdeu a noção do cálculo.
4º) Perda de dois números apenas – É de Forbes Winslow o seguinte relato: Em conseqüência de uma trepanação, um soldado perdera tal ou qual porção de massa cefálica. Alguns dias após, verificou-se que esquecera por completo os números 5 e 7. Essa anomalia desapareceu mais tarde.
A fim de não nos alongarmos demasiadamente em citações, basta dizer que se verificou em diversos enfermos a perda de um idioma estrangeiro, a de todos os substantivos.
O doente designava os objetos chamando-lhes “coisa”. Temos, ainda, a perda do alfabeto e, enfim, a de uma só letra.
Todas essas observações atestam a localização das percepções e dos movimentos associados. É provável que todos os estados sucessivos de consciência, que caracterizam a vida mental, tenham por fulcro uma zona particular do cérebro, correspondente a uma região definida do perispírito.
A memória propriamente dita
Chegamos, agora, à memória propriamente dita, ao que em filosofia se chamou reconhecimento, e que é uma capacidade de evocação, o ato pelo qual se transfere um fenômeno da inconsciência à consciência.
Se a revivescência não é, de si mesma, suscitada por uma percepção da mesma natureza, pode renascer, impelida pela vontade, quando concentrado o pensamento na lembrança que se quer reconduzir ao espírito.
Efetivamente, que vem a ser recordar? É, se bem nos lembrarmos das fases por que passou a sensação para sair do campo da consciência, restituir-lhe as duas condições indispensáveis à percepção, ou sejam: intensidade e duração.
Ora, a atenção tem precisamente estas duas propriedades, como passamos a demonstrar:
Ensina a experiência [vi] que a atenção redunda no aumento de capacidade motomuscular, ao passo que diminui o tempo de reação. Quando, voluntariamente, concentramos o pensamento numa coisa que desejamos recordar, enviamos na sua direção uma série de influxos sucessivos, que objetivam dar ao movimento perispirítico o mesmo período vibratório que ele tinha, pode dizer-se, um tanto mais fraco, no momento em que fora registrado, isto é, percebido. Essa repetência de excitação, provocando, por superatividade funcional, uma espécie de congestionamento do órgão material, produz, abaixo mesmo dos limites da consciência, uma espécie de atenção passiva. Depois de uma série de excitações da mesma intensidade, com exclusão das primeiras, naturalmente insensíveis, a recordação torna-se nítida, muito embora momentos antes a lembrança não existisse.
Realmente, o papel da atenção é exagerar os movimentos; e é por isso que nós podemos fazer exsurgir um estado inconsciente, nos umbrais da consciência, ou seja: lembrar-nos.
Se as sensações antigas, que constituem a imagem mental, são recordadas por sensações semelhantes, é claro que a lembrança reaparecerá por si mesma, pois que a localização é a mesma.
Ouvindo, hoje, uma ópera inteiramente esquecida, as melodias nos virão de pronto à memória: será como uma ressurreição natural. Mas, não somente a imagem atual rememora a antiga, quando idênticas, como também se dá quando apenas se assemelham e mesmo quando não mais se assemelham, sob a só condição de existir entre elas alguma analogia.[vii]
Aí temos um dos mais estranhos fenômenos da inteligência, que é a evocação inteiramente fantasista das idéias, umas pelas outras.
É como se cada idéia irradiasse em diferentes sentidos para evocar outra idéia que se lhe aderisse por um traço qualquer, comum.
Assim, se de improviso pensarmos num perdigueiro, logo nos vem a idéia de caça, e esta nos sugere a de um coelho a pastar.
Neste exato momento, a última consonância desperta em nosso espírito a imagem do porto de Dieppe – que tem em Le Pollet um importante subúrbio – e nós estamos avistando o mar e já lembrando os seus perigos, etc.
Assim, a evocação das idéias antigas segue uma rota maravilhosa e pode traçar as mais caprichosas variantes. Quando, porém, queremos reaver uma lembrança precisa, o espírito emprega outros meios, servindo-se daquilo a que Ribot chamou o ponto de referência. Citemo-lo:
Teoricamente, para recordar, não temos senão um modo de proceder. Determinamos as posições no espaço, como no tempo, em relação a um ponto fixo, que, no que diz com o tempo, é o nosso estado atual. Notemos que essa atualidade é um estado real, que tem o seu quanto de duração. Por breve que seja, ela não é, como fazem crer as metáforas, um relâmpago, um nada, uma abstração análoga ao ponto matemático, pois que tem um começo e um fim.
Ao demais, esse começo não nos aparece como absoluto, visto que toca sempre alguma coisa com a qual estabelece continuidade. Quando lemos (ou entendemos) uma frase, na quinta palavra, por exemplo, resta da quarta alguma coisa. Cada estado de consciência não se apaga senão progressivamente. Assim é que a quarta e quinta palavras estão em continuidade, tocando o fim de uma no começo da outra. Eis o ponto capital. Há uma contigüidade, não indeterminada e consistente, no contato de dois extremos quaisquer, e com a circunstância de tocar o extremo inicial do estado atualitário no extremo final do estado que imediatamente o precede.
Uma vez bem compreendido esse fato, o mecanismo teórico da localização no tempo também o será, desde logo, pois é claro que o retrocesso poder-se-á dar igualmente da quarta à terceira palavra, e assim por diante. Compreender-se-á que, tendo cada estado de consciência a sua duração, o número de estados conscienciais percorridos regressivamente e o quantum de sua duração darão a posição de um estado qualquer, em relação com o precedente, bem como o seu afastamento no tempo.
Praticamente, temos recorrido a processos mais simples e expeditos. É um curso que raramente invertemos, através dos meios intermediários, em sua maioria. Consiste, a nossa simplificação, nos pontos de referência. Tomemos um exemplo assaz comum. A 30 de novembro esperamos um livro de que muito necessitamos. Esse livro tem de vir de longe e a sua expedição requer mais ou menos 20 dias. Tê-lo-íamos encomendado a tempo? Lembramo-nos de que o pedido foi feito na véspera de uma rápida viagem, cuja data podemos fixar com exatidão: domingo, 9 de novembro. Desde logo, completa-se a recordação.
Se analisarmos este caso, veremos que o principal estado de consciência, a encomenda do livro, é, em primeiro lugar, rejeitada no passado, de um modo indeterminado; aflora, a seguir, dos estados secundários e, entre estes, um muito nítido: a lembrança da viagem; e, como a encomenda fora feita na véspera, a lembrança da viagem tornou-se o ponto de referência.
Os pontos de referência não são arbitrários, mas impõem-se-nos. A condição única a preencher é que o seu afastamento da atualidade nos seja bem conhecido. Em geral, são individuais, mas podem também estender-se a uma família, por um nascimento, um óbito, um casamento, ou ainda a uma coletividade, por um banquete periódico, e a uma nação, por um episódio como, por exemplo, a exposição de 1889.
Os pontos de referência permitem simplificar o mecanismo da localização no passado, pois, quando freqüentemente utilizados, a localização torna-se automática, tal como acontece com o hábito. Uma vez inúteis, os intermediários desaparecem e não restam mais que dois termos: a lembrança e o ponto de referência.
Esse retorno dos estados intermédios ao inconsciente é uma necessidade da vida mental, visto que, se fosse preciso percorrer todos os trâmites sucessivos, para atingir uma lembrança remota, a memória dar-se-ia por impossibilitada ante a longura da operação. Sem a reentrada de um prodigioso número de estados conscienciais no inconsciente, não poderíamos recordá-los. Tal eclipse no campo da consciência é, portanto, a condição essencial de uma boa memória e, daí, esta conclusão que poderia parecer paradoxal, sem as explicações precedentes, isto é: que o esquecimento é uma necessidade da memória.
Temos estudado mui sumariamente, mas no que têm de essencial, a sensação e a memória, sob as suas modalidades conscientes e inconscientes. O pouco que temos visto bastará para explicar os fenômenos de personalidade múltipla e comprovar, ao mesmo tempo, que as ilações tiradas desses fatos anormais são absolutamente inexatas.
[i] Richet- Psychologie générale, pág. 63.
[ii] Ribot – L’Hérédité, pág. 310.
[iii] Despines – Psychologie naturelle, pág. 485, t. I.
[iv] Ribot – Les Maladies de la Mémoire, págs. 6 e seguintes.
[v] Ferrière – La Vie et l’Âme, págs. 228-241.
[vi] Féré – Sensation et Mouvement, págs. 17 a 20.
[vii] Richet – Origines et Modalités de la Mémoire, pág. 584.
Autor: Gabriel Delanne
Fonte: Evolução Anímica