Filosofia*
COLABORAÇÃO INTEREXISTENCIAL
A Filosofia atual, representativa do nosso século, é a Existencial. Dela se derivou o movimento existencialista, por uma interpretação espúria do pensamento de Jean-Paul Sartre. Mas o pensamento desse famoso filósofo francês nada tem a ver com as estroinices da cantora Julliete Grecco, que aproveitou-se do renome de Sartre para criar no Café de Fiore, em Paris, um movimento juvenil em que se atribuiu o título de Musa do Existencialismo, dando a Sartre o título de Papa do Existencialismo. Simone de Beavoir, discípula e companheira do filósofo, perguntou-lhe porque aceitara essa situação. Sartre deu de ombros, dizendo que nada tinha com o movimento da cantora e nem se interessava por ele. O famoso autor de O Ser e o Nada e da Crítica da Razão Dialética costumava escrever numa das mesas do Café, e ali continuou a trabalhar, indiferente aos shows da cantora. A Filosofia Existencial desfigurou-se na opinião dos leigos, mas não abalou o seu prestígio no meio intelectual. Fundada por Kierkegaard, teólogo dinamarquês, que não pretendia filosofar, a Filosofia Existencial dominou o pensamento filosófico mundial e permanece como o marco de uma profunda revolução filosófica, semelhante à de Copérnico na Astronomia. O conceito existencial do homem foi desenvolvido pelos maiores filósofos contemporâneos, como Martin Hideggar, Karl Jaspers, Gabriel Marcel, Simone, Camus e outros. Esse conceito corresponde ao espírita, formulado por Kardec na Filosofia Espírita. O homem é um projeto, um ser que se lança na existência e a atravessa como uma flecha em direção à transcendência que é o objetivo da existência. Para Sartre, materialista, a morte é a frustração do homem. Para Heideggar, metafísico, homem se completa na morte. A Filosofia Existencial admite, em geral, que o ser é um embrião lançado à existência para desenvolver suas potencialidades. Há uma diferença essencial entre Vida e Existência. Todos os seres vivem, mas só o ser humano existe, porque existir é ter consciência de si mesmo e viver em ritmo de ascensão, buscando superar a condição humana e atingir a divina. O homem é o único existente. Esta palavra, existente, designa o homem como ser na existência.
Vejamos o sentido tipicamente espírita dessa concepção do homem. Antes de ser; o homem é apenas um vir-a-ser, uma coisa misteriosa fechada em si mesma. Ansiando por relação, essa coisa se projeta na existência e se abre na relação, encontrando nesta os elementos que a despertam e a transformam num ser. Este toma consciência de sua própria natureza de ser e como tal busca superar-se. No trânsito existencial desenvolve a sua essência e abre no maciço do mundo, feito de leis rígidas e fatalistas, a única brecha de liberdade, que é o homem com seu livre arbítrio. Para Sartre, ao chegar à morte o homem já elaborou a sua essência na existência, mas esta não subsiste porque o homem desaparece na morte: o homem é uma frustração. Para Heidegger, o ser se desenvolve na existência e se completa na morte: é uma realização. Para Jaspers, o desenvolvimento do ser na existência se faz em duas etapas:
1ª) a transcendência horizontal, no plano social;
2ª) a transcendência vertical, na busca de Deus.
Sartre aplica ao existente a dialética de Hegel:
a) o homem antes da existência é o em-si;
b) o homem na existência é o para-si;
c) o homem na morte é o em-si-para-si.
Como vemos, o em-si-para-si é a síntese dialética em que o em-si, (fechado em si mesmo) e o para-si, (aberto na relação social), que é a transcendência, horizontal de Jaspers, resolve-se no em-si-para-si, que é a condição divina atingida na transcendência vertical.
O conceito filosófico de existência difere profundamente do conceito de vida. Enquanto a vida se define como o elã de Bergson, um impulso, uma força que penetra na matéria e, segundo a idéia hegeliana, modela as formas, a existência é subjetividade pura, o que vale dizer espírito. Assim, não vivemos como as plantas e os animais, integrados na matéria, mas como espíritos ligados à matéria para usá-la em função de seus interesses subjetivos. Vivemos na psique e não no corpo. Nossa vida não é propriamente vida, mas um existir independente das coisas e dos seres materiais, cuja única aspiração verdadeira é a liberdade, que só podemos de fato obter e gozar na interioridade de nós mesmos. Mesmo encarnados, não saímos do plano espiritual, continuamos nele, nosso habitat natural, como sonâmbulos. A matéria não nos absorve, apenas reflete-se em nossa sensibilidade. O dia e a noite, a vigília e o sono, como Jaspers observou, marcam o ritmo existencial da relação alma-corpo. Durante o repouso do corpo, para refazer-se, voltamos ao mundo espiritual no veículo do perispírito, e mesmo em plena vigília escapamos da matéria através das fugas psíquicas, das projeções telepáticas, das várias modalidades da percepção extra-sensorial. A hipnose prova o sentido ilusório do viver. No estado sonambúlico ou hipnótico, semidesligados do corpo, vagamos no intermúndio e aceitamos facilmente as sugestões de uma situação irreal: tocamos violino sem violino, sentimos calor e suamos sem calor, resistimos ao fogo sem queimar-nos, regressamos no tempo e nos projetamos no futuro através da memória e assim por diante. A Gestalt nos mostra a ilusão da forma na percepção normal do mundo, em que as aparências pregnantes cobrem a realidade material precipitando-nos em quedas e frustrações. A evolução da Física roubou-nos o mundo sólido e opaco do passado e lançou-nos no torvelinho dos átomos e das partículas nucleares. A matéria esfarelou-se nas mãos dos físicos e obrigou-nos a reconhecer, como seres evanescentes, que vivemos num mundo mágico de estruturas imponderáveis.
Diante dessa realidade fantástica, as leis físicas às quais Bertrand Roussel se apegou para não naufragar no irreal, impõe-se a realidade-real das leis psíquicas, do espírito que domina, estrutura e ordena a matéria. O que chamamos de vida se transforma em existência, e esta não é mais do que a curta medida do tempo necessário para nos libertar-nos de um condicionamento mental determinado pela ilusão dos sentidos, como Descartes já verificara e demonstrara em suas tentativas de nos dar a Ciência Admirável que o Espírito da Verdade lhe revelara em sonhos. O cogito ergo sum do filósofo aparece-nos hoje como um traço de união entre o Cristianismo puro do Cristo e o Espiritismo, em que a verdade revelada se restabelece na sua realidade incompreendida, como uma ponte fluídica e indestrutível que liga duas partes do real, separadas pelo abismo de quase dois milênios de loucura, de esquizofrenia religiosa. Ao descobrir que essa frase cartesiana – penso, logo existo – foi o abre-te Sésamo de um filósofo mágico que não queria ilusionar mas atingir a Verdade, compreendemos que a ponte cartesiana passou sobre um abismo onde espumou por milênios a voragem de sangue e impiedade de um pesadelo mundial. E tão hipnótica foi essa voragem que cientistas e filósofos ainda resistem ao chamado da nova concepção do homem e do mundo em que o Espírito da Verdade nos oferece. O próprio Descartes, apegado aos ídolos de Bacon, saiu do seu deslumbramento para uma peregrinação ao ídolo de Nossa Senhora da Saletti, no cumprimento de uma promessa. Repetiu-se nesse episódio histórico a mensagem do Mito da Caverna na República de Platão. Um escravo escapou dos grilhões e foi ver à luz do Sol a realidade que só conhecia através das silhuetas de sombras. E quando voltou e contou o que vira lá fora, os demais o consideraram perturbado. No entanto, a partir de suas obras iniciava-se no mundo a Renascença Cristã, que se completaria mais tarde numa eclosão mediúnica em que as línguas de fogo do Pentecoste se acenderiam de novo sobre a cabeça dos Apóstolos da Nova Era. O conceito de existência é o carisma do Século XX, da fase mais aguda da transição planetária para um grau superior da Escala dos Mundos. As inteligências terrenas foram convocadas para a nova batalha cristã, em que os Mártires da Verdade não sofreriam mais as penas cruentas do passado tenebroso, mas enfrentariam as angústias da incompreensão e o martírio inevitável da marginalização cultural. Os construtores da nova cultura, nascida dos princípios cristãos, iniciariam sob escárnio e calúnias a construção da Civilização do Espírito. Esse o grave problema que os espíritas precisam encarar com a maior seriedade em nosso tempo, pois somos herdeiros dessa causa e os continuadores dessa obra. Se não nos empenharmos nela com a devida consciência da sua importância, se não formos capazes de sacrifício e abnegação em favor dos novos tempos, assumiremos também a nossa parte de responsabilidade nos fracassos que poderão levar-nos a uma catástrofe planetária.
Mas é bom lembrar que não estamos sós. Ao conceito de existência dos filósofos atuais o Espiritismo acrescenta o conceito da solidariedade existencial entre os espíritos e os homens. Provada a sobrevivência dos mortos pela pesquisa científica e demonstrada a interpretação dos mundos material e espiritual – que se evidência na nossa própria organização psicofísica –, impõe-se naturalmente o conceito espírita da interexistência. Já vimos que não vivemos apenas no plano material, que não estamos fundidos no corpo carnal, mas apenas ligados a ele como o condutor ao seu veículo. Nos estudos de Hipnotismo aprendemos que a nossa vida diária também se processa simultaneamente em dois planos. O mesmo acontece com os espíritos, que não estão isolados no plano espiritual, mas passam constantemente do seu plano para o nosso, como vemos no caso das comunicações mediúnicas, das aparições, das materializações e até mesmo, de maneira espontânea e concreta, visível e palpável, no caso das agêneres. Assim, a interpenetração do plano espiritual inferior com o plano material superior (a crosta terrena e sua atmosfera), constitui a zona planetária a que chamamos de intermúndio. Os gregos antigos diziam que os seus deuses viviam no Intermúndio, entre o Céu e a Terra. O Espiritismo nos permite compreender essa verdade de maneira clara e racional: para eles, os espíritos eram os deuses bons e maus que se comunicavam através dos oráculos e das pitonisas. Eles também conheciam as agêneres, pois os seus deuses podiam descer do Olimpo e aparecer aos homens como homens. O conceito de interexistência deriva do conceito de intermúndio formulado pelos gregos.
E no Espiritismo esses conceitos se ampliam através das pesquisas mediúnicas, revelando as leis da colaboração interexistencial a que naturalmente se entregam os espíritos e os homens em todos os tempos, desde os primitivos até ao nosso. Contamos, pois, com a colaboração constante dos nossos companheiros de humanidade na batalha cristã de elevação da Terra.
Anotemos a importância que, nesse contexto, adquirem as sessões mediúnicas de orientação e esclarecimento de espíritos sofredores ou malfeitores. A doutrinação espírita, sempre auxiliada pelos Espíritos Superiores e os Espíritos Bons que os servem, é um trabalho humilde de caridade que, no entanto, não se limita aos efeitos pessoais em favor do socorrido e das suas vítimas, pois sua contribuição maior é a da renovação consciencial ou despertar das consciências humanas para as responsabilidades do ser na existência. Pouco pode fazer uma sessão de doutrinação, diante da extensão dos desequilíbrios, a multidão de sofredores e malfeitores que nos rodeiam. Mas cada espírito que se esclarece é uma nova irradiação nas trevas conscienciais. Além disso, numa pequena sessão não temos o esclarecimento apenas das entidades comunicantes. Em geral, é maior o número de espíritos assistentes, que se beneficiam com a doutrinação dos que se encontram na sua mesma situação. Por outro lado, o ambiente espiritual da sessão irradia suas luzes muito além do recinto estreito em que se realiza. O milagre da multiplicação dos pães se repete em cada sessão de humildes servidores da causa que é de toda a Humanidade. Os resultados positivos das sessão vão muito além do que podemos perceber, espalhando seus benefícios no intermúndio, no Espaço e na Terra. Note-se ainda que essas sessões representam a colaboração humana aos trabalhos de esclarecimento e orientação que os Espíritos realizam incessantemente no plano espiritual. Essa participação dos homens nas tarefas espirituais restabelece os elos de fraternidade desfeitos pelo formalismo igrejeiro. E desfaz a fábula do ciúme dos anjos, que teriam se rebelado contra Deus pela encarnação de Jesus como homem, pela concessão aos padres do direito de perdoar pecados, que os anjos não possuem. Fábulas dessa espécie, criadas pela pretensiosa imaginação teológica, dão-nos a medida do desconhecimento dos clérigos mais ilustrados e prestigiosos sobre a realidade espiritual. Os anjos não são mais do que espíritos humanos que se sublimaram em encarnações sucessivas. O Espiritismo coloca o problema da Criação em termos evolutivos, à luz da concepção monista e monoteísta. Nas sessões mediúnicas de caridade anjos, espíritos humanos e espíritos diabólicos participam como orientadores, doutrinadores e necessitados de doutrinação. Não sendo o Diabo mais do que uma alegoria, um mito representativo dos espíritos inferiores voltados ao mal, a presença dos impropriamente chamados espíritos diabólicos nas sessões de socorro espiritual é justa e necessária. Ninguém necessita mais do socorro humano do que essas criaturas transviadas. Quando elas não estão em condições de aproveitar a oportunidade, não lhes é facultada a comunicação mediúnica. Permanecem no ambiente como observadores, vigiados pelos espíritos guardiães, e aprendem aos poucos, como alunos ouvintes, a se prepararem para o tratamento de que necessitam. Muitas pessoas não gostam dessas sessões de comunicações desagradáveis, onde a caridade brilha no seu mais puro esplendor. São nelas que os pretensos diabos deixam cair suas fantasias infelizes para vestir de novo a roupagem comum dos homens; voltando ao convívio dos que seguem a senda da evolução espiritual. Os grupos que se recusam a realizar esses trabalhos de amor acabam caindo nas mistificações de espíritos pseudo-sábios e pagam caro o seu comodismo e a sua pretensão.
A colaboração interexistencial iniciada pelo Espiritismo estabeleceu a verdadeira fraternidade espiritual na Terra. Esse fato marca um momento sublime nos rumos da transcendência humana. O planeta das sombras, cuja História é um terrível caleidoscópio de atrocidades e maldades, brutalidades e miséria moral, ganhou um ponto de luz celeste com essa reviravolta em suas precaríssimas condições religiosas. O desenvolvimento das práticas de socorro espiritual indiscriminado, oferecido a todos os tipos de necessitados, dará condições à Terra para se libertar das sombras e elevar-se aos planos de luz. O lema espírita: Fora da Caridade não há Salvação é o passaporte da Terra para a sua escalada aos planos superiores. Os médiuns que trabalham nessas sessões de socorro, ao invés de preferirem aquelas em que só se interessam por mensagens de Espíritos Superiores, estão mais próximos dos planos elevados e das entidades realmente superiores. Não foi para os elegantes e vaidosos rabinos do Templo que Jesus veio à Terra, mas, como ele mesmo disse, para as ovelhas transviadas de Israel. Os que pensam que só devem tratar com Espíritos Superiores provam, por essa pretensão, a incapacidade de compreender a elevação espiritual.
Autor: José Herculano Pires
Fonte: Curso Dinãmico de Espiritismo