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Reencarnação e Vida


      SaIvação

 

          Estava pensando em minha amiga Clotilde, quando esta entrou em meu aposento, pálida e triste, envolta em negros crepes.

          — Por quem o luto? perguntei aflita.

          — Por meu sogro.

          — Pois muito deves ter sentido, pois te acho pálida e abatida; vê-se em teu semblante as marcas da dor.
          — Efetivamente, imagina que estava em São Sebastião, com meu esposo, muito tranquila e muito contente, porque havia realizado um de meus sonhos, que era desfrutar os encantos que tem aquela cidade de veraneio, quando recebemos um telegrama de meu cunhado dizendo que fôssemos imediatamente a Madrid, porque nosso pai estava agonizando. Sem nos determos para fazer as malas, subimos ao trem e chegamos para receber o último suspiro do venerável ancião que, rodeado de seus filhos e netos, morreu sorrindo como devem sorrir os justos.

           —Era muito idoso?

           —Tinha 99 anos.

           —Pois uma morte assim é esperada e não há motivo para transtornar-se tanto, por mais que teu sogro tivesse fama de bom.

          — E creio que era, mas acredito que minha dor não é produzida por sua morte, porque, como dizes, morrer de velho é uma lei e ainda que sempre se sinta a ausência de um ser querido, ante o justo há que baixar a cabeça e dizer: — cumpra-se a vontade de Deus. Mas neste caso, é que junto ao leito mortuário de meu sogro conheci uma moça de 16 anos, que tinha todas as virtudes de uma santa, todos os encantos de mulher e toda a graça e a travessura de uma menina. Guilhermina era filha única de um casal de classe média que via o céu nos olhos de sua filha, e esta era tão expressiva, tão atrativa, tão carinhosa, tão amável, tão agraciada, que se fazia querer de todo mundo; meu sogro a queria como se fosse algo seu, e Guilhermina o acariciava e o mimava como se na realidade fosse seu avô. Posso dizer que vê-la e querê-la foi uma só coisa, e ela correspondeu a meu carinho com seus cuidados, suas atenções, com seus desvelos. Guilhermina era como o Sol, a luz de sua bondade irradiava a seu derredor, e dava calor e vida a todos que a rodeavam. Como me impressionei muito com a morte de meu pai, ela fez tudo quando pôde para me consolar. Raciocinava tão bem. Parecia uma velha cansada da vida; eu me encontrava pequena a seu lado e, ao mesmo tempo, tão contente que, como o menino procura o regaço de sua mãe, eu a buscava e reclinava a cabeça em seu peito para me tranquilizar e bendizer a vontade de Deus. Tinha o propósito de viver em Madrid, e meu esposo pedir sua transferência à Corte, para não me separar de Guilhermina. . . quando uma noite a formosa menina empalideceu e me disse:

           —Vem, que quero confiar-te um segredo.

          Não sei porque me assustei. Nos retiramos para seu quarto e me diz:

          — Tenho que te pedir um grande favor.

          — Qual?

          — Que console meus pais porque vão receber um golpe muito doloroso.

          — Muito doloroso?

          — Sim, dolorosíssimo; vão perder-me.

          — Que dizes?

          — Que amanhã morrerei, vi-me em sonhos amortalhada, coberta de flores, e meus sonhos são avisos do céu.

          — Deliras.

          — Não, não deliro, vou porque é preciso ir. Meus pais me adoram, mas seu carinho todo é para mim, e é necessário que amem a Humanidade. Vim para lhes despertar o sentimento; foram felizes com meu carinho, minhas carícias, mas sua felicidade os tornou avarentos e, para entesourar em ' meu favor um grande dote, negaram um pedaço de pão aos pobres. Falei em sonhos com um velhinho que parece um santo, que dizia: — "Desperta o sentimento de teus pais, diz-lhes que aproveitem o tempo, que sejam gratos à Providência, que lhes concedeu um anjo a seu lado, que façam boas obras em teu nome."
          E tudo isto dizia a meus pais, e minha mãe me dizia: — Deixa de bobagens. Não te lembras do que dizia Calderón? Que os sonhos, sonhos são.

          E à noite, tornei a ver o velhinho, que me disse: "Ao que se dá a luz, e não quer vê-la se deixa submerso nas trevas." Eu sou o Sol de meus pais e amanhã chegarei ao meu ocaso. Pobrezinhos! Que sós ficarão! E Guilhermina atirou-se em meus braços e chorou com o maior desconsolo.

          Não sei o que me ocorreu, mas também chorei, e creio gritei, porque vieram os pais dela muito alarmados e ao ver sua filha, chorando amargamente, creram que o mundo se afundava com eles. Que noite, Amália! Que noite!. . . Guilhermina, pálida, levantou-se e falou em tom profético aconselhando a seus pais que despertassem, abrissem os olhos à realidade, que iria para o bem deles, que lhes deixava por herança o despertador, e que esse despertador era a imensa dor de sua partida. Não sei como brotavam as palavras de sua boca, parecia um oráculo. Finalmente, emudeceu, abriu os braços e seus pais e eu nos abraçamos a ela.

          Não sei quanto tempo estivemos abraçados. Fui a primeira a compreender que Guilhermina morrera, porque seus braços caíram inertes; estava tudo concluído. Tudo, menos nosso desespero, porque seus pais e eu acusamos Deus de injusto, de cruel; não sei quantas blasfêmias pronunciamos. Assistimos ao enterro.

          Fizemos verdadeiras loucuras. Meu esposo tomou conta do assunto e, quisesse ou não, fez-me sair de Madrid, e aqui estou mais morta que viva.

          — E os pais de Guilhermina?

          — Creio que estão completamente loucos, porque o pai se fecha no quarto, escreve muito e depois sai, contente e diz: Escutai o que diz Guilhermina, e lê umas comunicações preciosas. A mãe chora, e os dois vão visitar enfermos pobres, e passam horas no hospital fazendo companhia aos enfermos mais abandonados. Como a loucura é contagiosa, eu também quis comunicar-me com Guilhermina e escrevi: "tu não necessitas de despertador". Meu marido ao ler isto gritou, e saí de Barcelona; aqui estou duvidando e crendo ao mesmo tempo, que os mortos vivem.

          — Sim, Clotilde, vivem e muitos deles servem de despertador à Humanidade.

          — Então Guilhermina não sonhava?

          — Não, lhe falava um Espírito e a preparava para sua desencarnação.

          — Então sua morte foi proveitosa?

          — Sim, creio. E com sua ausência os pais despertaram e entraram no caminho de sua regeneração. Deram-lhes flores para ver se sabiam aspirar seu delicado perfume, e vendo que não apreciavam o tesouro que tinham, deram-lhes espinhos. A dor foi o despertador desses espíritos letárgicos em seu egoísmo e em sua pequenez. Deus, nos encantos da Natureza, dá a uns mais que a outros? Não, o Sol brilha para todos. Pois assim tem que ser o amor dos espíritos e quando não se sabe amar, o despertador nos serve de mestre, e pela dor se chora e logo se ama.
 

 

Autor: Amália Domingos Soler
Fonte: Reencarnação e Vida
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