Joana D'arc e o Trabalho
Joana não descendia de alta linhagem; filha de pobres lavradores, fiava a lã junto de sua mãe, ou guardava o seu rebanho nas veigas do Mosa, quando não acompanhava o pai na charrua.
[i]
Não sabia ler nem escrever;
[ii] ignorava todas as coisas da guerra. Era uma boa e meiga criança, amada por todos, especialmente pelos pobres, pelos desgraçados, aos quais nunca deixava de socorrer e consolar. Contam-se, a esse respeito, anedotas tocantes. Cedia de boamente a cama a qualquer peregrino fatigado e passava a noite sobre um feixe de palha, a fim de proporcionar descanso a anciães extenuados por longas caminhadas. Cuidava dos enfermos, como por exemplo do pequeno Simon Musnier, seu vizinho, que ardia em febre; instalando-se-lhe à cabeceira, velava-lhe o sono.
Cismadora, gostava, à noite, de contemplar o céu rutilante de estrelas, ou, então, de acompanhar, de dia, as gradações da luz e das sombras. O sussurrar do vento nas ramagens ou nos arbustos, o rumorejo das fontes, todas as harmonias da Natureza a encantavam. Mas, a tudo isso, preferia o toque dos sinos. Era-lhe como que uma saudação do Céu à Terra. E qualquer que fosse o acidente do terreno onde seu rebanho se abrigasse, lá lhes ela ouvia as notas argentinas, as vibrações calmas e lentas, anunciando o momento do regresso, e mergulhava numa espécie de êxtase, numa longa prece, em que punha toda a sua alma, ávida das coisas divinas. Mau grado à pobreza, achava meio de dar ao sineiro da aldeia alguma gratificação para que prolongasse, além dos limites habituais, a canção de seus sinos.
[iii]
Penetrada da intuição de que sua vinda ao mundo tivera um fim elevado, afundava-se, pelo pensamento, nas profundezas do Invisível, para discernir o caminho por onde deveria enveredar. “Ela se buscava a si mesma”, diz Henri Martin.
[iv]
Ao passo que, entre seus companheiros de existência, tantas almas se mantêm fechadas e, por assim dizer, extintas na prisão carnal, todo o seu ser se abre às altas influências. Durante o sono, seu Espírito, liberto dos laços materiais, se libra no espaço etéreo; percebe-lhe as intensas claridades, retempera-se nas possantes correntes de vida e de amor que aí reinam, e, ao despertar, conserva a intuição das coisas entrevistas. Assim, pouco a pouco, por meio desses exercícios, suas faculdades psíquicas despertam e crescem. Bem cedo vão entrar em ação.
No entanto, essas impressões, esses cismares não lhe alteravam o amor ao trabalho. Assídua em sua tarefa, nada desprezava para satisfazer aos pais e a todos aqueles com quem lidava. “Viva o trabalho!” dirá mais tarde, afirmando assim que o trabalho é o melhor amigo do homem, seu amparo, seu conselheiro na vida, seu consolador na provação, e que não há verdadeira felicidade sem ele. “Viva o trabalho!” é a divisa que sua família adotará e mandará inscrever-lhe no brasão, quando o rei a houver feito nobre.
Até nas insignificantes minúcias da existência de Joana se manifestam um sentimento muito vivo do dever, um juízo seguro, uma clara visão das coisas, qualidades que a tornam superior aos que a cercam. Já se reconhece ali uma alma extraordinária, uma dessas almas apaixonadas e profundas, que descem à Terra para desempenhar elevada missão. Misteriosa influência a envolve. Vozes lhe falam aos ouvidos e ao coração; seres invisíveis a inspiram, dirigem-lhe todos os atos, todos os passos. E eis que essas vozes comandam. Ordens superiores se fazem ouvir. É-lhe preciso renunciar à vida tranqüila. Pobre menina de dezessete anos, deverá afrontar o tumulto dos acampamentos! E em que época! Numa época bárbara em que, quase sempre, os soldados são bandidos. Deixará tudo: sua aldeia, seus pais, seu rebanho, tudo o que amava, para correr em socorro da França que agoniza. À boa gente de Vaucouleurs que se apiada de sua morte, que responderá? “Foi para isto que nasci!”
[i] J. Fabre – Processo de reabilitação, t. I, págs. 80, 106, etc.
[ii] Ver, por exemplo, J. Fabre – Processo de reabilitação, t. II, pág. 145.
[iii] J. Fabre – Processo de reabilitação, t. I, pág. 106.
[iv] Histoire de France, t. VI, pág. 140.
Autor: Léon Denis
Fonte: Joana D'Arc, Médium III 2º§ Léon Denis