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Vade Mecum Espírita

MARX


          Se alguém duvidar da importância da Filosofia e da sua influência no desenvolvimento histórico da Humanidade, basta pensar no significado das quatro letras que servem de epígrafe a este capítulo. Esse pequeno nome de um judeu ale­mão do século XIX tem tamanha importância para o mundo atual quanto o teve o pequeno nome de outro judeu do século primeiro, para o mundo antigo.

          Não se espante o leitor, nem deixe o volume de lado, pensando que vamos dizer uma heresia. É que Jesus, com alguns princípios e uma atividade revolucionária, abalou os fundamentos da Antiguidade e lançou os alicerces de um novo mundo. Marx, embora de maneira diversa, fez o mesmo. De suas mãos saiu Lenine, e das mãos deste, a Rússia Soviética.

          Até há pouco tempo, escrever sobre Marx era muito difícil. Ou nos decidíamos a aceitar alguns chavões, tão mentirosos quanto estúpidos, forjados pelos seus adversários, ou estaríamos condenados de antemão. Hoje, a situação é bem outra. Podemos tratar Marx como um filósofo e um revolucionário, analisar o seu pensamento, expor a sua dou­trina, aprová-la ou rejeitá-la, com o nosso próprio critério.

          Mas não fomos nós, os que hoje usamos desse direito, que o conseguimos. Foi o próprio Marx. O simples fato de pôr em marcha o seu pensamento redundou na sucessiva derrocada das barreiras que o enfrentavam. E ainda aqui, apesar das divergências profundas, os dois judeus, tão dis­tantes na História quanto no plano das ideias, e ao mesmo tempo tão próximos no plano étnico e nos objetivos, muito se assemelham.

          Jesus quis instaurar na terra o Reino de Deus através do amor, pregando a fraternidade e igualdade entre os homens. Ensinou a paternidade universal de Deus, e com isso, como adverte o apóstolo Paulo na epístola aos gálatas, fez desapa­recerem as divisões convencionais entre grego e judeu, senhor e escravo, homem e mulher. Marx é um judeu mais recente. Nasceu num mundo já modificado pelo Cristianismo, mas viu que essa modificação não havia sido completa. Além disso, o amor de Jesus se transformara, através dos séculos, em ódio sangrento. Os judeus tiveram de aguçar o seu senso prático, tomando emprestado o espírito comercialista de seus vizinhos fenícios, para poderem enfrentar as agruras da dispersão num mundo hostil.

          Um pequeno objeto, com o qual certa vez os fariseus procuraram colher Jesus numa armadilha, — a moeda — tornara-se ao mesmo tempo o suplício e a salvação dos judeus. Marx, impulsionado talvez pelas forças mais profundas da raça, tomou exatamente a moeda como ponto de partida da sua reconstrução histórica, e fez dela um evangelho às aves­sas para os novos tempos. A fórmula de Jesus havia sido: A César o que ê de César e a Deus o que é de Deus. A de Marx foi: Nem a César nem a Deus, mas à Circulação. É o que vemos na sua exposição sobre a metamorfose das merca­dorias, em Crítica da Economia Política, não com essas pala­vras, mas com signos que as representam, como adiante de­monstraremos.

          Repetimos ao leitor, por mais piedoso que seja, que não se assuste. Comparamos fatos históricos e confrontamos fi­guras históricas. Não estamos no plano da Religião ou da Teologia, mas da Filosofia. Podemos dizer como Descartes: existe em Jesus um aspecto divino, que importa aos que são “mais do que homens” e recebem revelações diretamente de Deus; mas existe também um aspecto humano, que pode ser encarado pelos que são “simplesmente homens”. É esse o que nos interessa. E é ele que nos serve para este jogo de comparações, não entre um possível Deus e um homem, mas entre dois homens: Jesus e Marx.

          Não estamos fazendo, aliás, nada de novo. Também outro judeu, não menos renegado que Marx, foi comparado a Jesus. O panteísta Espinosa, que Gebhardt apresenta como o messias da Diáspora. E Stanley Jones, “o cavaleiro do Reino de Deus”, esse pastor cujas melhores obras ficaram na peneira da censura eclesiástica, ao passarem para a nossa língua, compara Marx ao chicote do templo, com que Jesus espanta os vendilhões modernos, para instaurar o Reino de Deus entre os homens.

          Podemos discordar de Marx, e mais ainda dos seus seguidores, e ainda mais dos seus intérpretes, mas não podemos negar-lhe a profunda humanidade de suas inten­ções e a grandeza profética de seu pensamento. Nele confluem a coragem e a audácia dos profetas hebraicos, para se fundirem com a audácia e a coragem dos modernos refor­madores sociais. Para estudá-lo com o seu próprio método, o do Materialismo Histórico, teremos de situá-lo, como o fez Riazanov, em sua época; mas podemos adicionar-lhe os an­tecedentes raciais a que acabamos de nos referir.

          Marx não é somente um homem forjado pelas condi­ções específicas do século XIX. É ainda um discípulo de Hegel, herdeiro de Kant, e talvez o último dos grandes pro­fetas da linhagem de Israel, deslocado da Bíblia por uma contingência histórica, mas fiel aos grandes sonhos da raça e da tradição hebraica.

          Sócrates e Descartes tinham os seus demônios. Os pro­fetas tinham os seus anjos. Marx, que fecha o espírito à visão metafísica, mas continua profeta e vidente no plano material, aparece também acompanhado de um anjo, que o ajudará a construir a sua doutrina e dará acabamento a sua obra. Engels, cujo nome alemão quer dizer anjo, parece ter-se lançado à terra, logo após o mergulho de Marx na matéria para auxiliá-lo em sua imensa tarefa.

          Isto não soará bem aos ouvidos materialistas, mas cons­titui também uma verdade histórica. Em geral, não se fala de Marx sem citar o nome de Engels. Um estudo sobre Marx é sempre intitulado com o binômio: Marx e Engels. Mas a função de Engels não é bem a de um termo de binômio, é antes a de um acólito. Veremos se, nas páginas se­guintes, esta relação se tomará clara.

SÉCULO DE RENOVAÇÃO

          Karl Marx nasceu em Trèves, a 5 de maio de 1818. Dois anos e meio mais tarde, a 28 de novembro de 1820, Frederico Engels nascia em Barmen. Ora, Trèves e Barmen são duas cidades da Renânia, essa província divisória entre a Alema­nha e a França. Ambos parecem ter escolhido, ou a Histó­ria por eles, uma região simbólica, para esse sucessivo nasci­mento. A obra que vão construir é também um marco divi­sório, no pensamento e na História. Marx pertencia a uma família de rabinos judeus, e seu pai era advogado, conver­tido ao Cristianismo para se livrar dos vexames a que os judeus eram submetidos na região. Engels, cujo brasão fa­miliar se constituía de um anjo com um ramo de oliveira, pertencia a uma família de ricos industriais de tecidos, prin­cipalmente de lã e algodão, produtos abundantes na Renâ­nia do norte. O pai de Engels fundou, em sociedade com um amigo, uma fábrica de tecidos em Barmen e outra em Manchester, tomando-se assim o tipo característico do capi­talista internacional, contra o qual o filho se arremeteria mais tarde.

          Apesar do catolicismo de conveniência do pai, a ascen­dência religiosa de Marx era o Judaísmo. Engels, pelo contrário, foi educado no Calvinismo. O pai de Marx era, porém, um homem do século” apaixonado pelas questões filosóficas, e incumbiu-se de iniciar o filho nas obras dos iluministas. O pai de Engels, como convém ao pai de um anjo, apesar de seu agudo interesse pelos bens do mundo, dedicava-se sempre à meditação religiosa. Não esquecia, assim, de dar ao filho os rumos de uma vida duplamente adaptada a sua natureza humana e a sua essência angélica: de um lado o iniciava nos negócios, e de outro na fé. Mas o anjo não tardou a rebelar-se, contra uma coisa e outra. Seu destino não era servir à linhagem industrial da família, nem a sua tradição religiosa, mas servir a Marx e aos ideais de renovação que fermentavam o século.

          Realmente, o século XIX apresentava-se como um cal­deirão ao fogo, em plena ebulição. Quando Marx e Engels nasceram, a epopeia napoleônica já havia terminado. A der­rota esmagadora do corso na Rússia, sua abdicação e exílio em Elba, a volta espetacular à França e a nova derrota, com a retirada definitiva para Santa Helena, já eram fatos consumados. Mas o fermento da Revolução Francesa e as consequências das guerras napoleônicas estavam bem vivos. Napoleão morreu no ano seguinte ao do nascimento de Engels, ou seja, em 1821.

          Na Inglaterra, a revolução industrial deixara também a sua marca profunda. O movimento ludista de 1815, quan­do os operários desesperados se lançaram contra as máqui­nas, sob o comando fictício do “General Ludd”, demonstrara a existência de uma nova força em campo, uma espécie de cunha introduzida entre os burgueses e os aristocratas, deci­dida a impor os seus direitos. Em 1819, graças às lutas constantes dos operários, e em parte à influência benéfica de Robert Owen, é publicada na Inglaterra a primeira lei de proteção ao trabalho industrial, o histórico Factory Act, que estabelecia o direito da criança operária e refreava um pouco a ganância desmedida do Industrialismo nascente.

          Ao lado dessa efervescência social, a máquina a vapor de Watt e seu aperfeiçoamento por Stephenson abrem novas perspectivas revolucionárias. O vapor é empregado para mover as máquinas de impressão, e a rotativa está prestes a surgir. Ao mesmo tempo, o Reno adquire enorme impor­tância, como via fluvial, já coalhado de máquinas a vapor. O Foguete, de Stephenson, sacode o mundo com as primeiras grandes façanhas de uma nova máquina: a locomotiva. Em Lião, na França, levanta-se a bandeira da revolução operá­ria, em 1831, e depois da derrota dos tecelões de seda, vemo-la ressurgir em 34. O século XVIII havia lançado a semeadura das luzes, mas o XIX ardia em labaredas amea­çadoras, e ao mesmo tempo em ardentes expectativas.

          Em 1841, Marx terminava os seus estudos universitá­rios. Engels, nessa mesma época, era atraído pelo movimento dos jovens hegelianos, a que Marx já pertencia. O mundo entrara, então, numa fase mais calma. As inquietações se transformavam em, doces esperanças. Marx pensava em iniciar sua carreira universitária, dedicando-se inteiramente aos estudos de filosofia e de ciência. Mas acontece um imprevisto: Bruno Bauer, seu amigo e mestre, um dos chefes dos jovens hegelianos, é proibido de ensinar na Universidade. Marx desiste dos planos tranquilos de vida universitária e se integra na luta.

          De 44 a 47 as agitações explodem de novo por toda a Alemanha. Marx é levado para a direção da Gazeta Re- nana, órgão burguês radical, que ele transforma em democrático-revolucionário, e que é fechado pelo governo prussia­no em 43. Então, Marx vê-se obrigado a emigrar para Paris, onde vai tomar contato com os socialistas franceses e ler pela primeira vez a Essência do Cristianismo, de Feuerbach. Este é o primeiro impacto do materialismo feuerbachiano no desenvolvimento materialista de Marx, que entretanto não endossa, mas, pelo contrário, critica as teorias de Feuerbach. Não obstante, a reviravolta de Feuerbach na filosofia de Hegel é inteiramente aceita. Marx não só a aprova, como passa a desenvolvê-la com entusiasmo. Hegel vai perder, em suas mãos, todo sentido espiritual, e sua imensa dialé­tica, herdada das antinomias de Kant, vai se transformar na dialética materialista.

          Enquanto Marx fazia essa nova descida socrática do Olimpo à terra, do espiritualismo hegeliano para o Materia­lismo, o anjo de Barmen girava em seu redor. Eles se ha­viam encontrado em 1841, quando Engels entrara como vo­luntário na guarda de artilharia de Berlim, para fazer o serviço militar, ingressando também no círculo de esquerda dos jovens hegelianos. A seguir, Marx fixou-se em seus estudos, afastando-se da luta. O profeta preparava as armas, e o anjo desprendeu as asas para girar protetoramente em torno da sua cabeça.

          Engels colaborava na Gazeta Renana, dirigida por Marx, e firmava seu nome nos meios culturais. Ainda em 41, es­creveu sua violenta crítica da filosofia de Schelling, que a convite do governo, devia falar em Berlim contra Hegel. Tinha então 22 anos, mas como os anjos não têm idade, podia enfrentar serenamente o famoso pregador do “pecado filosófico”

          Anjo rebelado, Engels não concordava com o misticis­mo de Schelling, para quem o pecado original havia sido o desligamento humano do absoluto, e a salvação só poderia ser a volta ao absoluto, através da realização espiritual. Mas também não concordava com Hegel, de cuja filosofia procurava tirar apenas a dialética.

          Em 1842, Engels passa a residir na Inglaterra, então agitada pelo movimento cartista, cujo nome provém da Carta de reivindicações do operariado. Ali escreveu seu livro Situação da Classe Operária na Inglaterra. Quando, em 1844, de volta à Alemanha, encontrou-se com Marx em Paris, assumiu o seu posto ao lado do profeta. Dali por diante, nada mais os separaria. O profeta estava de posse das armas podero­sas que forjara em silêncio, na sua tenda. E o anjo, com longa experiência das lutas proletárias e intenso exercício da dialética revolucionária, podia servi-lo em todos os mo­mentos.

          De 44 a 45, escreveram juntos A Sagrada Família, sua primeira obra de colaboração, dirigida contra os irmãos Bauer e seu hegelianismo de esquerda. Esse livro de título irônico é como um golpe de asa do anjo rebelado na família Bauer. Mas atrás da asa vai o pulso do profeta, que atinge e desmantela a filosofia hegeliana do espírito, para lançar os fundamentos da filosofia marxista da matéria.

          De 45 a 46, o profeta e o anjo se empenham na constru­ção de uma nova obra, A Ideologia Alemã. Desta vez, o golpe de asa e o pulso do profeta atingem também Feuer­bach, cujo materialismo é criticado e superado. Já então, a dupla se filiara à União dos Justos, organização comunista centralizada em Bruxelas, e cujo nome dá bem a medida de sua natureza utópica, de sua orientação ingênua.

          Graças aos dois, a organização passará a chamar-se União dos Comunistas e lançará a terrível palavra de ordem que sacudirá os quatro cantos da terra: Proletários de todos os países, uni-vos! O livro A Ideologia Alemã, que não encon­tra editor, define, entretanto, a nova posição do movimento operário. É um passo decisivo nos rumos do socialismo científico.

          O segundo passo será dado por Marx, que deixa o anjo como guarda-costas e avança, com o livro Miséria da Filosofia, sobre as barracas de pano da Filosofia da Miséria, de Proudhon, e sobre todo o acampamento cigano dos uto- pistas em voga. O terceiro passo será um avanço da van­guarda, a elaboração e publicação do Manifesto Comunista, que sai à rua em fevereiro de 1848, antecipando por alguns dias a revolução republicano-socialista francesa de Luís Blanc, as barricadas operárias de Paris, e, por fim, o golpe de Estado de Luís Napoleão.

          O Manifesto será seguido pela Contribuição à Crítica da Economia Política, livro que é, ao mesmo tempo, o vestíbulo e o mirante do gigantesco edifício de O Capital. O vestíbulo, porque por ele entramos na teoria econômica de Marx, e o mirante, porque dele podemos contemplar os pa­noramas que cercam o edifício ideológico do Marxismo. A Crítica sai em 1859, e O Capital, em 1867 (primeiro volume), em alemão, logo traduzido para o francês e o russo. O segundo volume da obra fundamental de Marx só apa­recerá em 1885, e o terceiro em 1889, ambos após a morte do autor, e graças aos cuidados, aos esforços e à dedicação de Engels. Depois da morte do profeta, o anjo continuava velando pela sua obra.

          Mas o terceiro volume não completa O Capital, ou pelo menos o seu plano. Marx pretendia escrever ainda o quarto volume, em que exporia aquilo que podemos chamar de mecânica mistificadora dos movimentos econômicos, mas não teve tempo de completar o trabalho. Suas notas a respeito foram reunidas por Kautsky e publicadas em 1904, sob o título de Teoria da Mais Valia. Como se vê, apesar de toda a dedicação do anjo, a obra de Marx foi tão vasta que ne­cessitou do subanjo Kautsky para completá-la.

          O Capital é uma baliza histórica. Antes dele, esten­de-se o panorama da pré-história socialista, com os sonhos e as utopias que vêm de Platão até Proudhon. Depois dele, o Socialismo adquire consistência filosófica e científica, es­trutura política, e está assim preparado para tomar o seu lugar na realidade social. Jesus pregara a socialização pelo amor, e depois dele os primeiros cristãos reuniram-se em comunidades fraternas, das quais o Livro de Atos nos con­serva algumas notícias. Marx vai ser apontado como o anticristo, pois pregará a socialização pela violência.

          Mas não se pode dizer que a pregasse pelo ódio. Bem ao contrário, encontramos em Marx a mais profunda compre­ensão do processo de desenvolvimento econômico e da in­fluência inevitável das suas leis sobre os homens. A vio­lência marxista, que decorre das leis de transformação da Natureza, pretende ser uma lei e não um princípio moral. É a constatação de uma fatalidade histórica, e não uma pre­gação intencional. Prossigamos, porém, no rápido exame que estamos fazendo, em linhas gerais, do século renovador, para vermos a origem histórica desse processo de violência.

          Depois da revolução republicano-socialista de 1848, que marca um novo passo do movimento socialista, mas acaba na vitória das forças reacionárias, com Luís Napoleão, so­mente em 1871 se verificará novo movimento socialista de importância, em França, após a guerra franco-alemã. Temos então o episódio da Comuna de Paris. Os antecedentes desse episódio estão nos próprios antecedentes da guerra. A derrota dos franceses em Sédan provocou a sublevação em Pa­ris e a queda do Império. Proclamada a República, verifica-se o entrechoque imediato das forças revolucionárias e reacionárias. O socialista Luís Blanc tentou um golpe de Estado em outu­bro, mas fracassou. Em fevereiro de 71, após o armistício, ele­geu-se a Assembleia Nacional, com maioria revolucionária, que levou para o governo um ministério do mesmo teor.

          O tratado de paz, elaborado a seguir, entregava à Prús­sia a Alsácia-Lorena, o que provocou intensa indignação em Paris. A Guarda Nacional sublevou-se, e a 18 de março proclamou a Comuna. O Comitê Central dos sublevados transformou-se em governo provisório ditatorial. Mas oito dias depois resolveu promover eleições, pelo sufrágio uni­versal, para entregar o poder à população. Constituiu-se assim um governo heterogêneo, minado por contradições po­líticas, que não resistiu à pressão do governo reacionário de Thiers, então localizado em Versalhes.

          Em fins de maio, dois meses e pouco depois de sua proclamação, a Comuna era derrotada, após o bombardeio de Paris pelo exército e uma luta sangrenta. Cerca de vinte mil communards foram então executados pelos vencedores, sem distinção de sexo ou idade, e outros deportados para a Ilha da Nova Caledônia. Ainda hoje prestam-se homenagens em Paris, junto a um muro do Cemitério Père Lachaise, aos milhares de communards, que foram ali barbaramente fu­zilados.

          Esse episódio explica o princípio da violência em Marx. Analisando-o, o filósofo mostrou os motivos do fracasso da Comuna, em carta dirigida ao seu amigo Kugelmann. O pri­meiro motivo foi a atitude romântica do Comitê Central, então governo ditatorial, promovendo eleições oito dias de­pois da sua posse. A própria constituição da Assembleia Nacional já havia demonstrado que o país não estava em condições de enfrentar a organização de um governo revo­lucionário, pois a vitória eleitoral da reação fora esmagadora. As eleições da Comuna constituíram o seu suicídio, a entrega do poder a elementos da reação, ou pelo menos a infiltração desses elementos no poder.

          Outro erro, fora a atitude ingênua do Comitê, acredi­tando possível a organização da Comuna em Paris, enquanto Thiers continuava à frente do governo em Versalhes. Este governo havia dado mostras de sua fraqueza, quando tentara apoderar-se da artilharia da Guarda Nacional, sendo então derrotado. Nessa ocasião, diz Marx, a guarda devia avançar sobre Versalhes e derrubar Thiers.

          O exame desses erros mostram duas coisas: que o poder do proletariado só pode implantar-se pela violência armada contra os detentores armados do poder burguês, e que o poder proletário só pode manter-se pela ditadura proletá­ria, exercida até o momento em que se tenha criado uma consciência revolucionária no povo. Sem isso, nenhuma Comuna pode subsistir. Acreditar ingenuamente que as forças reacionárias desaparecem pelo passe de mágica de um golpe revolucionário é tão fútil como acreditar que a burguesia entregue o poder, sem luta.

          Trata-se, para Marx, não de questões morais ou de princípios humanistas, mas de leis econômico-políticas. Essas leis são inflexíveis, como as leis naturais. Desprezá-las é fracassar. Não há alternativas. O episódio da Co­muna de Paris o provou, como todos os episódios anteriores, desde as lutas dos escravos na Antiguidade, já o haviam demonstrado. Marx parte da análise dos fatos, do exame das leis, para chegar às suas conclusões. Sua atitude é objetiva, baseia-se em dados concretos. Por isso, afirma o filósofo, sua profecia da sociedade futura não é uma uto­pia, mas uma doutrina científica.

          O século renovador se transforma, assim, num século profético, de anúncio e preparação do futuro. Que é esse futuro, como será ele? Marx o diz incessantemente: é o reino da verdadeira humanização, do humanismo legítimo, ou da “humanidade socializada”. Vemo-lo sonhar a todo momento com esse mundo diferente, livre da exploração e da violência, esse verdadeiro Reino de Deus na terra, que Jesus não conseguiu com o amor, porque Jesus também era utopista e não científico. Mas no século XIX a era dos utopistas passou: estamos numa fase de superação his­tórica e novas perspectivas se abrem para a Humanidade toda. Sim, a Humanidade toda. Porque Marx não deseja a felicidade apenas para os proletários, como dizem os seus críticos de má-fé, mas também para os burgueses, para os ricos, que não perderão somente os seus haveres e o poder, mas também aquilo que os desumaniza: a embriaguez do dinheiro e da propriedade privada.

          Marx contempla os operários reunidos para tratar da revolução e escreve a Engels: “Em seus lábios, a Fraternidade humana não é uma frase, mas uma verdade, e dos rostos que o trabalho tomou rudes, emana toda a beleza do humano.” Escreve também sobre o Comunismo, afir­mando com a ênfase de um profeta bíblico: “... é uma fase real da emancipação e do renascimento humanos, fase ne­cessária para a evolução histórica próxima... é a forma necessária e o princípio enérgico do porvir próximo... mas não é, como tal, o fim da evolução humana — é uma forma de sociedade humana”.

          E ainda, na Revue Marxiste, I, 13:

          Esse comunismo, sendo um naturalismo acabado, coin­cide com o Humanismo. Ê o verdadeiro fim da disputa entre o Homem e a Natureza e entre o Homem e o Homem. É o verdadeiro fim da disputa entre a existência e a essência, entre a objetivação e a afirmação de si, entre a liberdade e a necessidade, entre o indivíduo e a espécie.

REBELDIA E MORTE

          Marx era de temperamento bondoso, paciente, compre­ensivo, mas intransigente na defesa dos seus princípios e capaz da ira divina dos profetas hebreus. Como Elias, seria capaz de ressuscitar o filho da viúva de Sarepta e da mandar exterminar os profetas de Baal. Tinha ternuras de pomba e rompantes de tigre. Por isso mesmo, podia tratar como filhos os operários que o seguiam, e que na velhice o cha­mavam de “papá”, como podia acusar de covardes e degra­dados os que dele discordavam.

          Compreendia a simplicidade da vida proletária e era capaz de viver como homem do povo, mas não aceitava a humildade, que confundia com humilhação. Queria o bem de todos, num mundo de igualdade, mas não compreendia a caridade, que considerava simples meio de satisfação do amor-próprio burguês.

          Isto basta para nos mostrar que estamos diante de um rebelde no mais lato sentido do termo. Os profetas antigos acusavam os poderosos mas se curvavam diante de Deus. Este profeta moderno acusa os homens e Deus. Considera o Cristianismo um processo de degradação humana, que através da humildade e da resignação enxovalha o Homem.

          Vemo-lo exclamar indignado, num trecho citado por Mehring:

          Os princípios sociais do Cristianismo explicam todas as baixezas de que são vítimas os oprimidos por parte dos opres­sores, seja como uma justa punição do pecado original. seja como provação imposta aos eleitos da Sabedoria do Senhor. Os princípios sociais do Cristianismo pregam a covardia, o desprezo de si mesmo, o rebaixamento, o servilismo, a humil­dade, em suma, todas as qualidades próprias da canalha: mas o proletariado não se deixará tratar como a canalha.

          Este profeta temporão, fora de época, que escapou da Bíblia para aparecer na história do século XIX, nada teme na terra ou no céu. E parece não crer em nada. Mas, não obstante, leva uma vida de crente. Dedica todos os seus dias ao sonho do Reino de Deus na terra. Dir-se-ia que, cansado do rolar dos séculos sobre os velhos sonhos da raça, rebelou-se contra Deus para realizar com suas próprias forças aquilo que Deus negou aos homens.

          Elias foi arrebatado aos céus num carro de fogo, Marx quer um carro igual para percorrer a terra. Não lhe interes­sa o céu. Todo o seu interesse se volta para o Homem e a vida humana na terra. Poderia aplicar em sentido inverso, como fez com a dialética hegeliana, a frase de Jesus: “Os mortos que cuidem dos seus mortos.”

          Não se pense, porém, que desejava ser original, viver de maneira diferente dos outros. Pelo contrário, dele po­demos dizer que mergulhava no humano. Em junho de 1843 casou-se com uma amiga de infância, Jenny von Westphalen. Um irmão de Jenny toma-se ministro, e o que é pior, minis­tro reacionário na Prússia. Mas isso não importa. Marx tem plena consciência do mundo de contradições em que vive. Sabe que nesse mundo, como ensinara outro judeu muito antes dele, o pai pode ser contra o filho e vice-versa. Sua vida familiar decorre tranquila e amorosa. Seu lar é como a casca de noz de um barquinho milagroso, pairando sempre na crista das ondas, em meio aos temporais que ele vive en­frentando.

          Riazanov comenta esse fato, emocionado com o mundo de ternura que se derrama nas suas cartas à filha maior, cuja morte o feriu tão profundamente, que parentes e amigos temeram também pela sua vida. Aos amigos que lhe per­guntavam qual era o seu lema preferido, costumava respon­der: Homo mm; humani nihil e a me alienum puto, ou seja: Sou homem; nada do que é humano me é alheio. Homem, portanto, vivendo entre homens, voltado para os problemas humanos, Marx não pretendia ser o profeta que foi, nem o Zaratustra que às vezes o pintam, mas apenas um descobri- dor de caminhos para a emancipação humana.

          É curioso como neste aspecto se assemelha tanto a outro revolucionário que viria muito depois, e tão diverso dele quanto à posição filosófica e política: o mahatma Gandi, que chegava a esconder seus poderes psíquicos, ocultar suas relações com a “Voz”, espécie de demônio socrático que o seguia, para que nada o separasse do povo.

          A ação revolucionária de Marx, entretanto, é tão gran­diosa como a sua própria obra intelectual. Já o vimos, com Engels, transformar a Liga dos Justos em Liga dos Comu­nistas. Vimo-lo transformar a Gazeta Renana em flama re­volucionária, que o governo prussiano teve de apagar, apres­sado. Vimo-lo sacudir o mundo com o Manifesto. E vemo-lo ainda fundar a Nova Gazeta Renana, em Colônia, após o fracasso da revolução francesa de 48. Esse novo órgão é também fechado pelo governo. Marx vende o que tem para pagar suas dívidas e retira-se para Paris, isso em 1849. Mas Paris o repele, e Marx vai para Londres, onde funda a Nova Revista Renana, da qual consegue tirar apenas seis números.

          Logo após, dissolve-se a antiga Liga dos Comunistas. Marx entrega-se mais fundamente aos seus estudos e aos seus escritos, para depois da Exposição Universal de Londres, apoteose do capitalismo industrial, fundar e dirigir a I In­ternacional, ou Associação Internacional dos Trabalhadores, durante um período de dez anos. Essa Internacional era heterogênea. Marx luta para homogeneizá-la, sem o conseguir. Em 1872 ela desapareceu. Marx volta aos seus es­tudos, à crítica dos movimentos políticos, ao exame dos pro­blemas operários.

          A 2 de dezembro de 1881 morre-lhe a mulher, e pouco depois a filha mais velha. Marx entra em violento declínio. Não resiste a esses golpes, na idade em que se encontra e já esgotado pelas tremendas lutas de uma vida revolucio­nária. O profeta vê aproximar-se o termo da missão. Fosse na Antiguidade, teria visões e confabularia com os anjos. Mas no século XIX, de olhos fechados obstinadamente para todos os possíveis lampejos da Metafísica, apegado aos prin­cípios da sua dialética materialista, Marx se inclina simples­mente para a terra. Dia a dia suas forças se esgotam, sua capacidade de trabalho desaparece, a doença o atormenta. O último ano e meio de sua vida é doloroso, diz-nos Riazanov, mas servirá para justificar a sua morte, que ocorre a 14 de março de 1883.

          Engels, o anjo rebelado, vê partir o profeta rebelde, na inexorabilidade das leis naturais. Não quer saber se essas leis são de Deus, nem quer pensar sobre a incerteza da exis­tência humana na terra. E numa carta a Sorge, velho com­panheiro, encontra uma consolação natural para a morte do mestre: “Todos os fenômenos, — escreve — ainda os mais horríveis, que se cumprem segundo as leis naturais, compor­tam uma consolação. Assim é neste caso. Talvez a arte da Medicina tivesse podido dar-lhe ainda dois ou três anos de vida vegetativa, dessa vida impotente de um ser inútil que morre aos poucos. Mas Marx não suportaria essa vida. Viver tendo à frente uma quantidade de trabalhos não ter­minados, e provar o suplício de Tântalo, ante a impossibi­lidade de terminá-los, seria para ele mil vezes mais penoso que uma morte tranquila.” E logo depois: “Que seja as­sim. A Humanidade perdeu um chefe. Perdeu um dos seus representantes mais geniais.”

          Assinalemos ainda que Marx viveu seus últimos anos em Londres, em extrema pobreza, amparado por Engels e por organizações operárias. Sua fama era imensa, o mundo tremia ante o seu nome, até o céu se abalava ante a enunciação desse nome, que sacudia os púlpitos em frêmitos de horror e ódio. O Capital provocava polêmicas desesperadas por toda parte, embora fosse ainda uma obra inconclusa. Mas, como dizia Marx, não lhe havia rendido o suficiente para pagar sequer o fumo que gastara ao escrevê-lo. Sim, o fumo, porque era seu hábito escrever fumando.

          Até nisso se cumpria o seu destino de profeta hebreu. Pobre e combatido, sofria ainda as acusações dos inimigos c dos supostos amigos, que viam na sua amizade com Engels o interesse pela ajuda monetária. Nada mais justo, porém, nem mais coerente, do que esse fim de vida na miséria. Em­bora quisesse a fartura e a riqueza para todos, e não a mi­séria, isso o identificava com os desafortunados que defendia, e nos quais depositava todas as esperanças de redenção humana. De certa maneira, ele resgatava assim o pecado social de não haver nascido proletário. E purificado da origem burguesa, integrava-se plenamente no seio da classe messiânica.

          Engels, pelo contrário, na sua qualidade angélica, não tinha pecado a resgatar. Morreu doze anos mais tarde, em 1895, no gozo de uma situação tranquila, como o suces­sor de Marx, chefe e patriarca do movimento operário mun­dial. Deixou, entre seus muitos trabalhos, três obras que são fundamentais para o Marxismo: As Origens da Família, do Estado e da Propriedade Privada, Ludwing Feuerbach, exposição do Materialismo Dialético, e Anti-Dühring, refu­tação das teorias de Dühring e ao mesmo tempo introdu­ção ao Capital, de Marx. Ainda hoje, através de suas obras, o anjo continua acolitando o profeta.

O MATERIALISMO HISTÓRICO

 

          Hegel, como Berkeley, reduzira o Cosmos a uma só coisa: o espírito. Encerrara toda a realidade num dos seus aspectos, e com isso conseguira uma solução monista para a duplicidade do ser e do conhecer. Mas essa solução exi­gia uma mecânica, um processo, pelo qual se realizasse e ao mesmo se explicasse a unidade na dualidade. Hegel explica esse processo afirmando que “o desenvolvimento do espírito se realiza sob a forma de uma relação consigo mes­mo, sob a forma da realidade, e na unidade em si e para si.”

          Não há dúvida que tudo isso é obscuro. Mas Hegel lança as suas luzes sobre o caos, e nos esclarece a respeito. Sob a forma de uma relação consigo mesmo, o espírito é subjetivo; sob a forma de realidade é objetivo; em si e para si, é absoluto. Existe, pois, um ser afirmado, que é de natu­reza lógica, a ideia em si; um ser manifestado, exteriorizado ou objetivado, que é a Natureza, ou a ideia para si; e um ser realizado, que se reencontra a si mesmo, e é a ideia em si e para si.

          O Ser, na filosofia hegeliana, não é imóvel como o dos eleáticos; nem separado da realidade sensível, como em Platão e Aristóteles; nem emanatista, como em Plotino; nem criador de uma realidade estranha a ele mesmo e oposta a ele, como no Cristianismo. É um Ser que engendra em si mesmo a sua própria realidade, e que entretanto não é também o Ser-substância de Espinosa. Em última análise, a realidade é simplesmente um processo de desenvolvimento da razão. E esta, por sua vez, é o Absoluto.

          Assim, o Absoluto se desenvolve na História, cujas formas espirituais são a Arte, a religião e a Filosofia. O homem aparece, nesse gigantesco painel metafísico, também de ma­neira tríplice: como espírito subjetivo, ele é o indivíduo da Antropologia e da Psicologia; como espírito objetivo, é o ser moral das relações sociais; como espírito absoluto, é o ser universal que desenvolveu o seu conteúdo ideal de huma­nidade, elevando-se da moralidade à eticidade, aos planos de realização e compreensão dos valores éticos. A explica­ção hegeliana se estende, numa forma de dedução aristotélica ou de processão plotiniana, numa sucessão de tríades, até a vigésima sétima. Iremos encontrar, no existencialismo sartreano, uma aplicação recente da tríade hegeliana da ma­nifestação individual.

          Marx vai partir deste idealismo absoluto, deste monismo espiritual, para o seu materialismo absoluto ou o seu mo­nismo material. Começa por aceitar o princípio antropo­lógico de Feuerbach: o ponto de partida da Filosofia não deve ser o espírito, a razão, ou Deus, mas uma existência real, que é o Homem. A ideia em si é simples suposição, e a única realidade é o para si, o indivíduo real. Mas não podemos fundi-lo no absoluto hegeliano, pois o sujeito é uma coisa e o objeto é outra. Fechado em mim mesmo, colo­cado numa posição subjetiva diante do mundo, eu me con­fundo com os meus próprios pensamentos, idealizo-me, não sou capaz de ver a minha objetividade e portanto de perceber que é o meu cérebro que pensa para o meu corpo agir. Daí, para Feuerbach, toda a ilusão da Metafísica. Entre­tanto, outro homem, vendo-me da sua posição, percebe facilmente a relação de dependência existente entre as ati­vidades da minha mente e as do meu corpo.

          A natureza existe, pois, independente do meu espírito e de qualquer outro espírito. É uma realidade objetiva, da qual eu mesmo e os demais homens somos também produtos objetivos. Os seres fantásticos da Metafísica — Deus, os Anjos, os Espíritos — são simples projeções da nossa ima­ginação religiosa. Aliás, a Religião é a forma das relações humanas, o processo de “religamento”, de união das cria­turas. Em lugar da religião metafísica devemos ter uma religião social, colocando o Homem em lugar de Deus. O caminho de Feuerbach é o mesmo de Augusto Comte: segue a dialética hegeliana que vai do Ser ao Não-Ser, para produzir o Vir a Ser. Do combate à Religião, pas­sando pela negação absoluta do espírito, terminará na Re­ligião da Humanidade.

          A crítica de Marx atinge as deficiências de Feuerbach. Ele percebe que faltou a este a compreensão do processo dialético da filosofia hegeliana. Reconhece-lhe o mérito de haver “restabelecido os direitos do Materialismo”, mas con­dena em Feuerbach o mesmo que Hegel condenava nos espiritualistas anteriores: a passividade, a falta de dinamismo. Adotando, pois, a mecânica hegeliana das tríades, que lem­bra o sistema tríplice da exposição doutrinária dos druidas, na Gália Céltica, vai dinamizar o Materialismo.

           A História não será mais o desenvolvimento do Absoluto através do processo das contradições, mas o desenvolvi­mento da sociedade através desse mesmo processo. E temos, então, em lugar do espiritualismo dialético de Hegel, que para Marx é uma inversão da realidade, o restabelecimento do real em sua posição verdadeira, no Materialismo Histó­rico. A dialética de Hegel, que estava de cabeça para baixo, é posta em pé.

          Com essa efusão do espírito hegeliano no materialismo de Feuerbach, consegue Marx salvar o Materialismo da catalepsia que já o ameaçava, através do religiosismo antro­pológico. E consegue salvá-lo, também, do Mecanicismo, que o reduzia a uma vulgaridade de relojoaria. Graças à dialética hegeliana, ele modifica a própria teoria do conheci­mento dos racionalistas e dos empiristas, libertando o intelecto da modorra ou da passividade de Locke, para lhe garantir a atividade kantiana, mas sem o prejuízo idealista de Kant. Se este afirmava que o intelecto não era a tabula rasa de Locke, entretanto considerava os objetos como coisas em si, e portando incognoscíveis. Marx estabelece o princípio dia­lético da relação entre sujeito e objeto. Da ação recíproca de ambos resulta o conhecimento, que não é apenas per­cepção de sensações, mas verdadeira manipulação da rea­lidade.

          Assim, Marx aceita o nexo kantiano, embora não o faça explicitamente, mas dá a esse nexo um sentido ativo, de ligação objetiva entre o pensamento e o seu objeto. Não há nenhum problema quanto à realidade ou não das coisas objetivas. Não cabe à cogitação filosófica resolver essa possível dificuldade, que não é mais do que interpretação falaciosa da realidade mesma. A legitimidade dos nossos conhecimentos se comprova na prática, e não através do processo teórico. Não me cabe interpretar o mundo a meu modo, mas agir sobre ele, transformá-lo. Quando faço isso, desaparece qualquer problema metafísico na estrutura do conhecimento. Porque o simples fazer me prova a legiti­midade do meu conhecer, como Locke também já admitira.

          Um exemplo, citado por Mehring, dá-nos clara ideia da atitude marxista em face da especulação filosófica de tipo racionalista. Marx diz que ao encararmos algumas frutas, como maçãs, peras, morangos, formamos em nossa mente a representação geral ou conceito de fruta. Avançando mais, imaginamos que esse conceito, induzido dos objetos reais, é uma essência, que existe, por si, independente do nosso pensamento. Disso concluímos que o conceito fruta é a substância de todas as frutas. Essa conclusão nos leva à posição de Espinosa em face do problema da substância, e acabamos por afirmar que o real não são as frutas comuns, mas o conceito fruta, do qual a maçã, a pera e o morango são apenas modos. Mas chegando a esse ponto, sentimos a necessidade de explicar como a essência fruta produz os objetos que são as frutas comuns. Para fazer isso, temos de renunciar à abstração e voltar ao concreto. É então necessário todo um jogo de raciocínio, o mais complexo pos­sível, para fazermos a mágica da volta ao real.

          Como vemos, a crítica de Marx tem tanto de irônica quanto de legítima. E para completá-la, Mehring nos cita esse trecho saborosamente socrático: “O que vos agrada na especulação é que nela encontrais de novo as frutas reais, mas como Frutas que têm um alcance místico superior, que são vegetações do éter do vosso cérebro e não do solo e do terreno naturais, que são encarnações da Fruta, do Su­jeito Absoluto. Quando retomais da abstração, do ser da razão sobrenatural, que é a Fruta, às frutas naturais e reais, dais a estas um alcance sobrenatural, transformando-as em outras tantas abstrações.” Podemos ver nessa espécie de maiêutica marxista as engrenagens da fabulação racionalista e empirista da realidade, mas vemos também a facilidade com que a gnosiologia marxista cai na vulgaridade, ou seja, na teoria vulgar do conhecimento.

          A ironia de Marx nos mostra o perigo dos abusos da especulação, mas por outro lado nos mostra o perigo con­trário, do não-uso da especulação. Porque a práxis mar­xista se identifica, na sua simplicidade, com a prática vulgar. Qualquer homem comum acha que não existe mistério no conhecimento. Mas o fato de podermos medir e transformar o sensível, segundo leis fixas, não basta para assegurar-nos a validade do nosso conhecimento. A indústria não prova, como querem os marxistas, essa validade. Prova apenas que a estrutura dos órgãos sensoriais humanos é una e homo­gênea, e que nos permite visualizar a realidade como ela deve ser, mas não como ela é.

          Exemplifiquemos: se o daltonismo fosse o normal e o normal fosse a doença, nossa visão da realidade seria outra, mas nem por ser geral teria validade absoluta. O Marxismo simplifica demais um problema que subsiste apesar da sua negação. Para querer negar o subjetivo e escapar às questões de essência e substância, a gnosiologia marxista cai fatal­mente no terreno da vulgaridade.

          Já não acontece o mesmo, quando Marx aplica à His­tória as antinomias da dialética hegeliana, servindo-se de suas observações dos movimentos sociais e políticos da época, e dos princípios da economia política inglesa. Não obstante as críticas a respeito, sentimos nesse momento a mão do gênio. Filósofos modernos acusam Marx de retorno ao antropocentrismo e geocentrismo da fase anterior a Copérnico. Consideram sua filosofia demasiado limitada ao nosso planeta e aos problemas práticos da vida humana na terra. Mas é justamente essa a premissa de que parte todo o raciocínio marxista. Foi o próprio Marx quem afirmou a necessidade de passarmos da especulação à ação, da inter­pretação do mundo à sua transformação.

          O mesmo se poderia dizer de Sócrates, quando resolveu pôr de lado a metafísica dos antigos fisiólogos e aceitar o desafio prático dos sofistas. Quando muito, podemos dizer que o Marxismo é uma filosofia da contingência humana na terra, mas nem por isso deixa de ser filosofia e de apresentar problemas tão graves quanto o da existência ou não de Deus e de entidades incorpóreas fora da matéria.

          O Materialismo Histórico é a parte do Marxismo que se aplica ao exame dos fatos históricos, na base das relações de produção de cada momento histórico. Constitui, pois, uma aplicação específica do Materialismo Dialético, que é a teoria geral do Marxismo. E o curioso é que enquanto podemos refutar facilmente o Materialismo Dialético, por seu caráter particularista, já não temos a mesma facilidade para refutar o Materialismo Histórico, apesar de tudo quanto se tem dito contra ele. Isso em virtude mesmo de sua es­pecificidade. Aplicando as categorias hegelianas ao pro­cesso do desenvolvimento social, Marx não faz mais do que particularizar a visão geral de Hegel, e com isto lhe dá maior objetividade, a toma mais clara e precisa. O processo dialético universal se manifesta, por assim dizer, no plano da história humana.

          Acusa-se Marx de haver tomado por absolutas as formas circunstanciais da sociedade em certos períodos, como a feudal e a capitalista, lançando a partir das mesmas a teoria da evolução social que levaria ao Socialismo. Seria o mesmo que acusar os evolucionistas de partirem das formas simples da vida para as complexas. Marx não podia fazer de outra maneira. A realidade que se apresentava aos seus olhos, no plano histórico, era a da sucessão de formas sociais, algumas bem definidas em suas estruturas, como o Feu­dalismo e o Capitalismo, e a da luta de classes que as mi­navam. Tinha de ser com base na observação dessa reali­dade que ele iria construir o seu sistema.

          Mas a verdade é que Marx vai mais longe, penetra com Engels na investigação da Pré-História, buscando nas formas larvais da sociedade primitiva a explicação do desenvolvi­mento social em seus primórdios. É todo um jogo de forças que se desvenda aos seus olhos, marcando ao longo do ca­minho humano o desenrolar da História, esse mesmo desen­rolar que Hegel atribuía ao Espírito. A diferença é que Marx não sabe e não quer saber se existe um desdobrar metafísico do abstrato no concreto, mas se interessa apenas pelo processo do desenvolvimento real do concreto.

EVANGELHO DA MOEDA

          Dissemos que Marx lançou um evangelho da moeda às avessas. Vejamos o que isso quer dizer. Ao tratar da metamorfose das mercadorias, em sua Crítica da Economia Política, Marx mostra o processo dialético pelo qual, na circulação, a mercadoria se transforma em dinheiro e vice- -versa. Apresenta-nos então duas fórmulas, que são: M-D-M e D-M-D. Na primeira, temos dois movimentos contrários, o primeiro sendo M-D, que representa a metamorfose da mercadoria em dinheiro, ou seja, a venda, e o segundo mo­vimento como D-M, a troca do dinheiro por mercadoria, ou seja, a compra. Esses dois movimentos contraditórios cons­tituem o ciclo M-D-M, que equivale ao duplo movimento vender para comprar, ou aquilo que Marx chama o curriculum vitae da mercadoria. Vemos assim a dialética da civilização. A venda já traz em si, implícita, a sua contra­dição, que é a compra.

          Nesse processo dialético, a mercadoria não se trans­forma apenas em dinheiro, em moeda, mas principalmente naquilo que está simbolizado na moeda: o ouro. O traba­lho acumulado na mercadoria, que é o seu valor, determina o seu preço. Ao se efetuar a venda, verifica-se o que Marx chama o salto mortal da mercadoria, que se transforma em valor de uso, e consequentemente passa de ouro imaginário que era, nas mãos do possuidor que não a utilizava, a ouro real. Da mesma maneira, o dinheiro deu um salto contrário, pois a moeda ideal, que era apenas medida de avaliação do preço, converteu-se em moeda real. Assim, o ciclo M-D-M apresenta ainda, além dos seus movimentos contrários, duas metamorfoses contrárias e a passagem de duas mercadorias, em sentido inverso, pelo ponto central D.

          Quer dizer, como explica Marx: se eu possuo duas to­neladas de ferro e as vendo, estou convertendo a minha mercadoria particular em mercadoria universal, através do dinheiro, e com isso realizo o primeiro movimento M-D; mas se depois adquiro um terno de roupa com o dinheiro, estou fazendo o contrário, ou seja, convertendo a mercadoria uni­versal, dinheiro, em mercadoria particular, através da com­pra. O ciclo M-D-M se encadeia na circulação com inume­ráveis outros, “como uma confusão de cadeias infinitamente entrelaçadas”, segundo a própria expressão de Marx. É o universo das trocas, a circulação da riqueza, do valor que resulta do trabalho.

          Mas vimos que existe outro ciclo, que é o contrário de M-D-M, ou seja, o ciclo D-M-D. Se no primeiro, que ana­lisamos rapidamente, a mercadoria vai e vem através do dinheiro, que permanece no centro, no segundo é o di­nheiro que faz os dois movimentos, através da mercadoria central. Neste segundo ciclo, diz Marx: “é o dinheiro que constitui o ponto inicial e final do movimento”. E escla­rece: “Na primeira forma, o dinheiro é mediador da troca de mercadorias; na última, a mercadoria é a mediadora, que faz com que o dinheiro se converta em dinheiro. O dinhei­ro, que na primeira forma aparece como simples meio, na última é o objeto final da circulação, e a mercadoria, que na primeira forma era o objeto final, na segunda é simples meio.” M-D-M é, pois, a forma normal da troca, enquanto D-M-D é um absurdo, ou parece um absurdo, pois equi­vale a trocar ouro por ouro. Mas quando compreendemos que D-M-D quer dizer, na realidade, comprar para vender, tudo se torna lógico.

          É justamente neste ponto que entra a moral da histó­ria. Neste ponto é que aparece o evangelho da moeda às avessas. Porque Marx revela, através da fórmula D-M-D, não só a mecânica, a engrenagem e a estrutura da produ­ção capitalista, como também a sua natureza. Desvenda- -lhe a alma. E que alma! Revela cruamente que a fórmu­la D-M-D não é apenas a troca de ouro por ouro, mas a troca de ouro por mais ouro. Acentua Marx: “... compra-se barato, para vender caro”. Isso equivale a converter a mercadoria como qualidade, como valor natural, produzido pelo trabalho, em simples quantidade, que serve ao jogo imoral da ganância capitalista. Assim, o ouro, que era mercadoria universal, medida de valor e meio de circulação, se transforma em moeda. E como moeda: “De servidor, converte-se em amo; de simples peão, transforma-se em deus das mercadorias.”

          A seguir, Marx analisa o processo do entesouramento, que se torna possível com a emancipação do ouro, que se desliga do processo de trocas, para se apresentar indepen­dente e soberano, como tempo de trabalho concretizado, ou como materialização do tempo de trabalho. Quando tro­camos, na fase M-D do primeiro ciclo, a mercadoria por dinheiro, convertemos o valor particular em riqueza social. Mas quando, no segundo ciclo, o que nos interessa não é mais a troca da mercadoria, mas a troca de forma, como diz Marx, fazemos exatamente o contrário: convertemos a ri­queza social em tesouro particular. E o dinheiro então se converte, tanto na finalidade como na origem da paixão de enriquecer, segundo a expressão de Marx. O profeta rein­tegra-se, neste momento, na mais pura tradição hebraica: suas barbas fremem de santa indignação, e seu ímpeto é o de atirar ao chão as tábuas da lei, ante o espetáculo da ado­ração impura do bezerro de ouro. O evangelho marxista da moeda é um evangelho às avessas, que não dá normas do que se deve fazer, mas do que não deve ser feito.

          Vejamos agora como podemos passar, do problema da moeda, ao problema da transformação socialista do mundo. O ponto de transição está implícito na própria moeda. O que é, ela, senão uma medida universal do valor das mercadorias? E o que é esse valor, senão o trabalho huma­no acumulado? Para Marx, não existe valor além do tra­balho. A madeira no mato é uma desvalia. Mas quando o Homem a transforma pelo seu trabalho, ela adquire valor. Há, pois, a Natureza, o meio natural em que o Homem aparece na terra, em suas formas primitivas, e há no Ho­mem a necessidade de adaptar-se a esse meio. A adapta­ção se faz pela constante ação do Homem, que é trabalho. Pelo trabalho ele modifica, transforma, melhora o meio. Consequentemente, o enriquece. Mas há também a ação do meio sobre o Homem. O trabalho é uma forma dialé­tica, implica ao mesmo tempo a ação do Homem sobre o exterior e a ação do exterior sobre o Homem.

          Dessa reciprocidade vai nascendo um novo Homem e um novo meio, ou seja, o meio artificial, que se constitui das coisas que o Homem vai criando, através da sua pri­meira criação, que é o instrumento. Arquimedes tinha ra­zão, quando pedia uma alavanca para deslocar o mundo. Desde o momento em que possuiu em suas mãos a pri­meira alavanca, o Homem não deu mais sossego ao Mundo, revirou-o incessantemente, e continua a revirá-lo. O Homem e o Mundo são a tese e a antítese de uma dialética univer­sal, em perpétua interação. Esse o motivo do progresso, do desenvolvimento das sociedades humanas, ou da Socie­dade Humana, se o quisermos. As próprias criações do Homem exigem sempre novas criações.

          Mas o progresso tem também as suas criações espe­ciais e uma delas é a divisão do trabalho e a consequente divisão dos homens em grupos econômicos, que resulta na luta de classes. A sociedade se estrutura, portanto, sobre o fenômeno da luta de classes, que cresce na proporção do desenvolvimento da técnica. Eis a razão por que Marx vai aplicar a teoria hegeliana do desenvolvimento dialético à Civilização. A sociedade feudal, por exemplo, é um mo­mento do processo de desenvolvimento social. Nela apa­recem os resultados da divisão do trabalho: de um lado a classe dirigente e de outro a dos servos. Mas a classe dirigente, que é útil enquanto realmente dirige a criação da riqueza, torna-se inútil e prejudicial, quando se converte em parasitária. Então, a classe trabalhadora se vê impedida no seu desenvolvimento. Surge uma situação de conflito, em que as forças produtoras caem na estagnação. Toda a so­ciedade fica ameaçada de degeneração. As exigências do progresso, porém, forçam a mola da História, e a evolução irrefreável da técnica acaba por romper o arcabouço enve­lhecido da estrutura social.

          Na Antiguidade, vemos as sociedades escravocratas de­saparecerem, pelo atrofiamento da sua base de produção. Na Idade Média, assistimos ao desenvolvimento e à queda do Feudalismo, pelo mesmo motivo. Ainda aqui, o proble­ma é dialético, pois cada forma de sociedade traz em si mesma o seu oposto, o elemento de contradição que a destrui­rá. No Feudalismo, essa forma de contradição se desen­volveu com o sistema de trocas, a cadeia crescente das fórmulas M-D-M, logo mais degeneradas em D-M-D, que acabaram arrancando a riqueza, através da moeda, das mãos dos nobres, para a arca dos burgueses. No Capitalismo. que é forma de sociedade construída pelos burgueses, donos da moeda ou do capital, as leis dialéticas continuam a agir. E o Capitalismo acabará sucumbindo por efeito de suas pró­prias contradições internas, de suas antinomias insanáveis, res­saltadas nas formas agudas da luta de classe da era indus­trial, e das próprias lutas entre os grandes grupos econômicos.

          Assim como o Feudalismo criou e alimentou em seu seio a burguesia, a classe que o havia de destruir, assim o Capitalismo cria e alimenta a classe que o destruirá, o operariado .Esta, pois, é a classe messiânica das profecias de Marx. A ela cabe a reforma do Mundo, o aniquilamento das injustiças sociais do Capitalismo, o estabelecimento do Reino do Homem na terra, esse mesmo reino que, para um judeu bem anterior a Marx, era o de Deus. Não deixemos de assinalar, porém, a serenidade filosófica e a isenção cien­tífica da análise marxista do desenvolvimento social. As for­mas sociais, que são etapas do desenvolvimento social, cons­tituem, por isso mesmo, exigências do progresso. Não são más em si, nem detestáveis. São necessárias. Sem o Feu­dalismo e o Capitalismo que dele surgiu, não teríamos a criação da riqueza, que permitirá o advento do Socialismo. Ou que o exigirá, que o determinará, pois esse advento é o que podemos chamar um fatalismo histórico.

          Neste momento tocamos naquilo que os críticos do Marxismo consideram uma das suas contradições insanáveis. Nem todos os críticos, é claro, mas principalmente aqueles que criticam o que não estudaram. Se o desenvolvimento social é um processo dialético inexorável, decorrente de leis inerentes ao próprio fenômeno social, estando assim sujeito ao fatalismo da Natureza, como se explica a criação do Par­tido Comunista? Para que esse partido, se o Socialismo é tão fatal como o amadurecimento de um fruto na árvore? Este problema implica o velho dilema de determinismo e livre arbítrio. Mas o Marxismo o coloca na mesma posição em que Kant o colocara: o determinismo caracteriza o plano físico, a natureza, e o livre arbítrio caracteriza o espírito, em seu plano de atividade moral. Marx procura fugir a uma contradição muito mais séria que a referida anterior­mente, explicando que a necessidade ou determinismo tem como complemento a liberdade. O Socialismo é uma ne­cessidade histórica, mas depende da atividade livre do Homem, para realizar-se. O fruto na árvore pode mirrar ou bichar, antes de amadurecer, ou pode apodrecer e cair sem ser aproveitado.

          O Homem enfrenta duas formas de determinismo: a fí­sica, decorrente das leis naturais, e a social, decorrente das leis da vida em sociedade. À primeira dessas formas ele está rigidamente submetido. À segunda, está submetido de maneira dinâmica. Porque é ele mesmo, pela sua ativida­de livre, que gera as leis sociais. Entretanto, não nos es­queçamos de que o Homem em sociedade é determinado pelas condições econômicas. Sua consciência, sua moral, sua personalidade são moldadas pelas formas de produção. Vemos assim por que o determinismo tem a liberdade como complemento. Sem a liberdade de vender e comprar, o Homem não criaria o determinismo das trocas, que o prende na imensa rede das fórmulas M-D-M e D-M-D, em contínua expansão.

          Não há dúvida que a solução é engenhosa. Mas aqui podemos lembrar o episódio Locke-Leibniz sobre o problema do conhecimento. Marx, de certa maneira, diz que nada existe no Homem que não venha da produção. Com um sorriso socrático, podemos fazer-lhe uma advertência leibniziana: exceto o Homem.

Herculano Pires - Os Filósofos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Autor: Herculano Pires
Fonte: Os Filósofos
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