CASO V — Extraio-o da revista Luce e Ombra (1916, pág. 40). A distinta escritora Annete Boneschi-Coccoli escreve, nos seguintes termos, ao diretor dessa revista: |
Já decorreram vários anos desde o tempo em que realizávamos pequenas sessões espiritas, íntimas e familiares, em casa de nosso amigo, contador Enrico F., com um restrito grupo de amigos e os membros componentes daquela boa e simpática família. Foi naquelas reuniões que pude me iniciar na mediunidade, depois desenvolvida com indizível prazer e bom resultado para mim.
Mas então o médium consciencioso, e direi também ingénuo, era o próprio chefe da família, auxiliado pela sua filha, Srta. Giulia, uma intelectual no sentido mais honroso da palavra. Havia ela publicado um livro premiado pelo Ministério, escrevia novelas para as revistas, e fazia desenhos em que a argúcia fina e socialmente crítica se casava com o brilho da fala toscana, mas o seu interêsse pelas sessões mediúnicas era pelo processo cômodo da tiptologia e, também, quando o grupo não estava reunido, fazia ela escrever o seu fácil instrumento com a progenitora ou outra pessoa que acaso estivesse presente.
Certo dia, às primeiras horas da tarde, quando na boa estação se costuma repousar, a Srta. Giulia sentou- se à mesa com sua mãe e uma prima, hóspede eventual que, a falar a verdade, pouco acreditava naquilo; porém, quando o aparelho, com a linguagem convencionada, começou a escrever e a médium lhe perguntou quem era o espírito presente, recebeu esta resposta:
Então o gentil comunicante disse que seu nome era Gio...
Aí foi interrompido por Giulia, que lhe disse:
Êste curioso caso me foi narrado na mesma tarde, pela protagonista e eu presumo que tenha despertado alegres comentários, como por exemplo: "Bravo, noivi- nha! Noivo engenheiro invisível, e além de tudo, poeta!"
E assim divertia-se meio-mundo com aquêle espírito zombeteiro, como tantos outros que se manifestam em comunicações pouco sérias. Depois não se falou mais no caso. Certa vez, decorridos não me recordo quantos dias, Giulia F. apareceu em minha casa. Sempre muito corada, pareceu-me congestionada naquele dia.
Compreende-se que fiquei petrificado. Na carta estava repetido tudo o que antes havíamos sabido pela tiptologia e finalizava, não pela assinatura de Giovanni, mas de Giovacchino G. F. Se a médium não tivesse interrompido as pancadas, estaria certo o prenome. Lá se achava a poesia, idêntica em tôdas as partícularidades e, por fim, a idade de 36 anos.
Devíamos, pois, saber se realmente êle morava onde dizia e se todos os dados fornecidos eram verdadeiros. Por felicidade, Giulia tinha uma parente naquela cidade e dirigiu-se a ela para obter esclarecimentos.
Tudo combinava: sòmente uma ducha fria diminuiu o entusiasmo, pois o engenheiro poeta era... casado, mas separado da mulher. O estranho caso não podia terminar assim. Devia-se ir até o fim, para sua documentação científica, e a jovem resolveu responder a carta do seu ardente admirador, revelando-lhe a maneira estranha pela qual tivera conhecimento antecipado dos seus sentimentos e da poesia a ela dedicada.
Pertencente à religião evangélica, pois era filho de pai anglo-saxão, êle absolutamente não acreditava nas comunicações espiritas, nem na possibilidade do desdobramento espiritual. Contudo, deve ter ficado um tanto abalado, pois o rapaz anunciou a sua breve chegada a Florença. Daí, o espanto, a curiosidade e um pouco de desânimo também.
Mas o pior é que a família não o quis receber e foi necessário que uma amiga piedosa .. .e curiosa por saber até que ponto chegaria a audácia dêsse espírito-vivo, acolhesse o pedido da médium em ser-lhe apresentada. E assim as coisas correram do melhor modo possível (se bem que não em perfeita regra), em vista dessa circunstância especialíssima.
Era um moreno simpático, um tanto baixo e gracioso, com grandes olhos meridionais e magnífica voz de barítono, educado e eloquente. Aplaudido conferencista, falava sempre nos comícios agrários, tinha modos distintos e era insinuante, de modo que recomendei a Giulia que tivesse cuidado, pois era um homem fascinante.
Certamente, interessado como estava, ele se havia manifestado um tanto lisonjeiro para com a escritora. Narrou as suas desventuras domésticas, as consequências de uma infeliz ligação, os seus afetos de família, a adoração que tinha por sua querida mãe e uma irmãzinha única. Em suma, dentro de poucos dias eram bons e cordiais amigos, mas ele não queria acreditar em coisas que encontrava dificuldade em conceber. Era muito mais cético do que São Tomé, que pelo menos acreditou com uma prova tangível.
Ficamos sabendo que, na hora de sua manifestação à escritora, estava mergulhado no sono habitual, depois da refeição em família. Assim, o seu “duplo" viajou de Palermo a Florença. Em suas relações com Giulia teve de contentar-se com alguns passeiozinhos: um simples flêrte peripatético, continuando ambos a corresponder-se de vez em quando, sem mais galanteria ou madrigais, como dois bons camaradas nos domínios da Arte. (Ass. Annete Boneschi-Coccoli.)
No caso supracitado, observa-se a particularidade de um espírito de vivo que se manifesta, no sono, a uma pessoa que não conhece, particularidade bem rara nas manifestações mediúnicas desse genero e, especialmente, entre pessoas vivas, pois é notório que as manifestações se realizam unicamente quando entre os protagonistas existem relações afetivas ou, pelo menos, relações de qualquer grau de parentesco, de amizade ou de simples conhecimento. Na ausência de tais condições, não se poderia estabelecer, entre as duas pessoas, a “relação psíquica” que é condição indispensável para a realização de tôda manifestação telepático-mediúnica. Ora, como se observa no caso em questão, em que o agente não conhecia a pessoa a quem se manifestou mediúnicamente, êle é excepcional, conquanto se trate de uma exceção que confirma a regra. Leve-se em conta que, pelas informações fornecidas sôbre os protagonistas, é notório que a “relação psíquica” entre eles pôde se estabelecer em virtude do grande interesse que no indivíduo-agente havia suscitado a leitura de um trabalho literário da médium-percipiente, interesse tão acentuado e sentimental, que inspirou ao agente uma poesia em homenagem à jovem desconhecida, como também o levou a iniciar relações epistolares com ela. Compreende-se, pois, que tal estado de alma (indicando a existência de uma grande afinidade no temperamento literário dos dois escritores) tenha sido suficiente para provocar, espontaneamente, durante o sono, a “relação psíquica” entre o admirador e a admirada. Em outros têrmos, se os protagonistas não se conheciam, eram porém duas almas que vibravam em uníssono.
Como dissemos, tais episódios são raríssimos nas comunicações mediúnicas entre vivos, conquanto se realizem com maior frequência nas comunicações mediúnicas com os mortos, e isso devido a condições que não se verificam nas comunicações com os vivos. Além de tudo, há entidades espirituais conhecidas pelo nome de “espíritos-guias” que levam intencionalmente às sessões espiritas, personalidades de mortos desconhecidos de todos os presentes a fim de que êles transmitam aos vivos informações verificáveis de suas existências terrenas e, com isso, fornecem provas incontestáveis de identificação espirita. Em tais circunstâncias, a “afinidade psíquica” entre o espírito desconhecido e o médium realizar-se-ia de forma indireta, isto é, por intermédio do “espírito-guia”.
Tal acontecia nas célebres experiências do Rev. William Stainton Moses, nas quais o “espírito-guia” “Imperator” levava às sessões numerosas entidades desconhecidas do médium e dos presentes, a fim de confirmar indiretamente a génese transcendental dos ensinos ministrados por meio de uma longa série de provas de identificação espirita.
A outra circunstância que torna possíveis as comunicações mediúnicas com entidades desencarnadas desconhecidas consistiria no fato de que os médiuns, no ato de exercerem as suas faculdades supranormais, serem circundados de uma aura luminosa perceptível a qualquer graduação de espíritos desencarnados, dos quais, mesmo os inferiores, não deixariam de se aproveitar para satisfazer o vivo desejo de se comunicarem com o mundo dos vivos, empresa difícil, porém algumas vezes realizável, porque, no complexo das qualidades, dos defeitos, das tendências particulares ao temperamento do médium, muitas vêzes os espíritos encontram o elemento de afinidade psíquica necessário ao estabelecimento de uma relação ainda que imperfeita com o médium.
Observo, finalmente, que a relatora explica o incidente referido, tomando-o por um fenômeno de “bilocação”, isto é, que o “duplo” do agente ter-se-ia transportado de Palermo a Florença. Penso que não será necessário recorrer-se a tal hipótese, em contingências semelhantes, que podem ser esclarecidas com a transmissão telepática do pensamento, ou melhor, pela comunicação à distância entre duas personalidades integrais subconscientes, o que não deveria causar muito espanto quando se reflete que o Tempo e o Espaço não existem no ambiente espiritual.
Autor: Ernesto Bozzano
Ouça todos os Domingos 9h30 às 11h00 com comentários do autor do Vade Mecum Espírita, no site:
www.radiobrasilsbo.com.br
contato@vademecum.com.br | Fone: (19) 3433-8679
2024 - Vade Mecum Espírita | Todos os direitos reservados | desenvolvido por Imagenet