Nas Malhas da Lei
Nas malhas da Lei
J. L.
Na reunião da noite de 13 de setembro de 1956, nossos Instrutores trouxeram à comunicação o Espírito J. L., que, relacionando comovidamente a sua história, nos ofertou grave estudo em torno da lei de ação e reação, no campo da Justiça.
Meus irmãos:
Jesus no abençoe.
Agora que o tempo aliviou as minhas aflições de Espírito endividado, posso oferecer-vos meu caso, para exaltar convosco a função da Justiça Divina.
Quantas vezes o ciclone das provações indispensáveis sopra, violento, sobre as comunidades espíritas, provocando escândalos e desastres, acidentes e tragédias, semeando com isso desalento e desilusão injustificáveis, porque, em todos os acontecimentos da vida, prevalece a harmonia da lei de causa e efeito, a que nenhum de nós poderá fugir!...
Para não tomar-vos o tempo, serei tão sucinto quanto possível, já que os Instrutores de vossa casa recomendam-me cooperar em nossas lições da noite.
Nó século passado, era eu o chefe de uma casa simples, não obstante afortunada.
Minha mãe viúva, minha irmã Olívia e eu vivíamos, então, num sítio do norte brasileiro.
Nossa existência transcorria sem problemas dignos de menção, quando Olívia, para surpresa nossa, passou a nutrir singular afeição pela casa paroquial, comandada por um homem puro e nobre, o padre Venâncio, que se fizera credor do respeito e da confiança de todo o vilarejo que nos vira nascer.
Eu e minha mãe tentamos entravar-lhe as inclinações, todavia, minha irmã declarava-se portadora de vocação religiosa que não nos seria lícito contrariar.
E foi assim que vi minha genitora finar-se, extremamente desgostosa, porquanto sonhara para a filha, quanto para mim, um futuro risonho, adornado pelas bênçãos da vida familiar, em que as suas esperanças de mulher se multiplicassem através de netos a lhe abençoarem o nome.
Com a morte de minha mãe, Olívia passou a residir ostensivamente no domicílio do sacerdote.
Devotava-se aos cuidados da igreja, à leitura sacra, à meditação e à prece, aguardando permissão para o ingresso num convento baiano.
Meu espírito egoísta e tiranizante, porém, não conseguia concordar com semelhante situação e passei a ver naquela intimidade, puramente fraterna, quadros escusos e inconfessáveis que, em verdade, somente pertenciam à minha imaginação.
Crivei Olívia de acusações amargas.
Ameacei furtar-lhe a vida.
Procurei um entendimento com o padre que, tranqüilo, me afirmou a sua lealdade e inocência.
Tudo fizera para que minha irmã voltasse a casa.
Ela, no entanto, insistia em consagrar-se à vida monástica.
Pedia-me ajudá-lo a resolver o problema.
Longe, porém, de compreendê-lo, incriminei-o, ainda mais.
Escrevi cartas anônimas às autoridades religiosas do tempo, buscando desacreditá-lo.
Amarguei-lhe o coração por todas as formas ao alcance de minhas possibilidades, tentando correr com a sua presença de nossa localidade, que passou a aceitar-me as calúnias perversas.
Após dois anos em que o meu ódio gratuito se convertera em obstinação delinqüente, sabendo que o sacerdote se reunia com minha irmã num campo próximo, a pretexto de comungarem estudos e orações, quando os vi saindo a sós da residência, à tardinha, tomei da arma de caça e farejei as vizinhanças.
Ocultei-me no basto arvoredo e, depois de uma hora, a distância de poucos metros, qual se fora astucioso felino a esconder-se na romaria, surpreendi que padre Venâncio colocava uma das mãos sobre a cabeça de Olívia, então deitada sobre a relva.
O padre ajoelhava-se, auscultando-lhe o coração.
Cego de crueldade, puxei do gatilho e o tiro não falhou.
O sacerdote tombou desamparado, sem um grito.
Fugi como pude.
Afastei-me.
Aguardei a noite em floresta próxima e, de volta a casa, encontrei o povo aturdido, guardando o cadáver daquele que passara a ser, não somente minha vítima infortunada, mas também o obsessor de meu pensamento, porque desde o estampido, a repetir-se, constante, em meu crânio, nada mais vi em minha consciência senão padre Venâncio, clamando vingança ou pedindo socorro à Bondade Divina.
Minha irmã informou que sofrera um delíquio e que o sacerdote a assistia, bondoso, quando caiu em sangue no chão...
E, apavorada, breve conheceu a loucura, expirando, inconsciente, numa casa religiosa no Recife.
O tempo impôs-me igualmente a morte e, quando a morte veio, sinistra situação foi a recompensa da Lei à minha imensa culpa.
Cercaram-me entidades satânicas, acusando-me pelo crime de que somente eu mesmo guardava notícia, porque o assassínio do apóstolo ficou envolvido em plena sombra.
Gênios bestializados conheciam-me a torva história, atirando-me em rosto com segura exatidão de minúcias.
Suportei remoques e sarcasmos, sem que me valessem rogativas de comiseração.
Fui batido, escarnecido, humilhado e metido a ferros num presídio da pior espécie, porquanto, desencarnado, na espessa materialização de meus sentimentos, o cárcere funcionou para mim como se eu estivesse ainda entre homens comuns.
Seviciado por numerosas flagelações, depois de muito tempo recorri à Providência de Deus, através da oração regada de lágrimas, e piedosos braços me libertaram, conduzindo-me à escola regeneradora de que eu tinha premente necessidade.
Triste a posição daquele que, embora favorecido pela brisa do socorro celeste, sente dentro de si mesmo o ferrete do crime perpetrado, porque, por mais me felicitassem as bênçãos dos instrutores que me aconchegavam de encontro ao seio, quanto mais luz brilhava em torno de minh’alma e quanto mais entendimento se me descerrava no cérebro, mais me doía a chaga íntima do remorso.
Conduzido às organizações espíritas nascentes, no século que passou, procurei trabalhar com aqueles que se consagravam à causa do Evangelho entre as criaturas, aspirando à volta à carne e, com o amparo de muitos benfeitores, consegui regressar...
Renasci num lar correto.
O arrependimento criara em mim tendências nobres.
Tive uma meninice e uma juventude preservadas com esmero, assimilando a educação que me transformou num médico digno e consciente.
Podereis imaginar quanta esperança me palpitava no espírito, sentindo os deslumbramentos da Revelação Divina, aliados aos conceitos científicos de minhas próprias observações.
Casei-me...
E porque minha esposa não pudesse receber a alegria da maternidade, ela e eu concordamos em adotar uma criança de sangue alheio.
Improvisamos um berço, e uma doce menina, filha de pais anônimos, mas naturalmente enviada pela Bondade do Céu aos nossos anseios, adornou-nos os braços.
Entretanto, quando a nossa Maria Helena mal completara sete anos, minha esposa partiu, deixando-me inconsolável.
Não consegui acomodar-me às segundas núpcias, embora as requisições dos amigos e não obstante reconhecesse, eu mesmo, a minha necessidade de recomposição da existência.
Entre a saudade da esposa que demandara o sepulcro e o carinho da filha com que o Senhor nos presenteara, dediquei-me à tarefa propriamente considerada.
O templo espírita era, em verdade, o meu segundo lar...
Os doentes, os necessitados e os aflitos eram os irmãos de minha alma...
Contudo, Maria Helena, jovem e bela, ao meu lado, despertava em muita gente malignas idéias com respeito à minha conduta.
Ninguém acreditava na respeitabilidade de meu paternal afeto.
E, por isso, em se aproximando do nobre rapaz que lhe cativara os sonhos femininos, foi ele assaltado de cartas anônimas, de observações ingratas e de apontamentos caluniosos, com alusão à filha abençoada que o Senhor conservava em meu carinho.
Em razão disso, Antônio, esse o nome do rapaz, casou-se de coração amargurado, mais para desincumbir-se da palavra empenhada, do que por acreditar na felicidade que ele sentia impossível, de vez que não encontrava argumentos para arredar-me da velha casa que lhes ofereci com largueza de confiança.
A maledicência continuou fiando envenenadas teias ao redor de nossa vida, e depois de dois anos, sem que eu pudesse prever o que se passava no íntimo do genro indireto que o Senhor me havia concedido, Antônio viaja, sem determinação de regresso.
Finda uma semana, certa noite chuvosa e úmida, com a nossa residência mal iluminada, ouço minha filha chamar-me.
Estava febril, doente...
O relógio marcava os primeiros minutos da madrugada.
Ergui-me, rápido, e fui atendê-la.
Pediu-me uma oração, rogou-me um passe, e, quando me entregava ao piedoso mister do auxílio espiritual, eis que o esposo de Maria Helena penetra a casa violentamente, observa as minhas mãos sobre aquele corpo que me era sagrado e, sem qualquer vacilação, descarrega sobre mim o revólver, insensível, interrompendo-me a alegria da tarefa evangelizante.
Nada mais preciso acrescentar acerca da provação que permaneceu no campo de nossa fé, como dolorosa pergunta no espírito de todos os companheiros:
Por quê?... Por quê?... Por quê?...
Entretanto, o tempo aguarda-nos a todos e o tempo responderá a cada uma de nossas indagações.
Contudo, para que a serenidade beneficie os corações arrebanhados sob nosso estandarte de esperança, trago-vos minha dolorosa experiência, salientando o nosso dever de acatar a vontade do Senhor, em todos os lances de nossa vida, porque o Senhor, amparando-nos a redenção, determina também que a Lei se cumpra, ensinando-nos que para todos nós, os Espíritos culpados, não há bem-aventurança do Amor, sem correção da Justiça.
Fonte: Vozes do Grande Além - FCX