Sensação e Percepção
Sensação e percepção
Neste estudo e no subseqüente, recorreremos às investigações dos cientistas contemporâneos, respigando em seus estudos, tão claros e convincentes, mas precatando-nos para introduzir, na boa medida, o elemento perispírito, tornando, assim, compreensíveis os fenômenos e dando-lhes uma explicação lógica, que de outra forma lhes faltaria.[i]
Distingamos, preliminarmente, a sensação da percepção.
Quando um agente externo impressiona os sentidos, produz-se no aparelho sensorial uma certa alteração a que chamamos sensação. Essa modificação é transmitida ao cérebro pelos nervos sensitivos e, depois de um trajeto mais ou menos longo, chega às camadas corticais.
Nesse instante, dois casos podem apresentar-se: ou bem a alma toma conhecimento da alteração sobrevinda ao organismo e dizemos que há percepção, ou bem a alma não é advertida da ocorrência, a sensação registra-se sem embargo, mas fica inconsciente. Como anteriormente observamos, essa transformação da sensação (fenômeno físico) em percepção (fenômeno psíquico) torna-se absolutamente inexplicável desde que se não admita a existência do eu, ou seja, do ser consciente.
Isto posto, examinemos mais atentos os fatos sucessivos que se encadeiam, do choque inicial à percepção.
Já sabemos que tudo é movimento na natureza. Os corpos que nos parecem em repouso não o estão nem exteriormente, de vez que participam do movimento da Terra, nem interiormente, de vez que as moléculas são incessantemente agitadas por forças invisíveis, que lhes dão as suas propriedades físicas particulares: estados sólidos, líquidos, gasosos e, para os sólidos, consistência, brilho, cor, etc.
Também os tecidos do corpo estão em movimento e, durante a longa travessia pelas formas inferiores, vimos como certas partes do corpo se diferenciaram pouco a pouco do conjunto, para engendrar os órgãos dos sentidos.
Essas modificações fixadas no perispírito iam cada vez mais encarnando-se na substância, à medida que aumentava o número de passagens pela Terra, e nós verificamos que não foram necessários menos do que milhões de anos para graduar o organismo ao nível em que o vemos hoje.
Qual a natureza das modificações produzidas?
Ensaiemos demonstrar que ela reside nos movimentos. Toda sensação – visual, auditiva, tátil ou gustativa – procede originariamente de um movimento vibratório do aparelho receptor.
O raio luminoso que impressiona a retina, o som que faz vibrar o tímpano, a irritação dos nervos periféricos da sensibilidade, tudo isso se traduz por um movimento, diferente, segundo a natureza e a intensidade do excitante. O abalo propaga-se ao longo dos nervos sensitivos e, depois de um certo percurso no cérebro, chega, conforme a natureza da irritação, a uma zona especial da camada cortical, sendo aí que o movimento origina a percepção. Tocamos, aqui, no ponto obscuro, pois nenhum filósofo, nenhum naturalista pôde jamais explicar o que então ocorre.
Uns, como Luys, dizem que a força exalta-se, espiritualiza-se, o que vale por nada dizer; outros se contentam em dizer que a percepção pertence ao sistema neuropsíquico, quando modificado de certa maneira, o que vale por dotar a matéria das faculdades da alma, sem que nenhuma indução o justifique. A célula nervosa é o elemento que recolhe, armazena e reage.
Operará por vibrações, como a corda tensa que oscila, quando deslocada da posição de equilíbrio? Ou, antes, consistirá o fenômeno numa decomposição química do protoplasma?
É questão não resolvida, mas o que há de certo é que uma alteração ocorreu. Desde então, a força vital modificou-se num certo sentido, sofreu um movimento vibratório particular, este se comunicou ao perispírito. É então que se dá o fenômeno da percepção, se a atenção for despertada.
O Espírito não conhece diretamente o mundo exterior. Entaipado num corpo material, não percebe os objetos circundantes senão pelos sentidos, que lhos revelam. Ora, a luz, o som, só lhe chegam sob a forma de vibrações, diferentes segundo a cor, para a vista, e segundo a intensidade, para o som. Ele atribui um nome a tal ou qual natureza de vibrações, mas não conhece intrinsecamente a luz nem o som.
Exemplificando: a luz vermelha tem vibrações diferentes, em número, da luz violeta, e desde a infância nos ensinaram que a tal espécie de vibrações chama-se vermelho, e a tal outra, violeta. Pela mesma razão, tal vibração deverá atribuir-se ao som, aos odores, aos sabores, etc.; de sorte que o espírito não vê, mas sente a vibração correspondente ao vermelho; não sente tal odor, mas percebe a vibração que o determina, e o que lhe dá a impressão de uma nota musical é o número de vibrações perispirituais que, num segundo, correspondem a esse som.
O que dizemos de uma cor aplica-se a todas as cores, de modo que o globo ocular, que recebe milhões de vibrações diferentes, ao contemplar uma paisagem, ao ver uma ópera, transmite ao cérebro milhões de movimentos vibratórios, que se registram em sua substância e no seu perispírito, ao mesmo tempo e de um modo indelével.
Já houve quem comparasse a célula psíquica ao fósforo, que, depois de sofrer a ação da luz, permanece luminoso na obscuridade. Nós, porém, como analogia, preferimos a comparação da placa sensível, que, impressionada pela luz, conserva para sempre, graças a uma reação química, fixo e indelével o traço da excitação luminosa.
Poder-se-á superpor nessa placa uma série de imagens, e qualquer que seja o número destas, em se sobrepondo incessantemente às precedentes, não as apagarão jamais.
Haverá sempre uma adição, um amontoamento de imagens e nunca uma destruição, uma extinção das primitivas pelas supervenientes.
Todo o mundo está de acordo em que as modificações produzidas nas células são permanentes.
Maudsley diz: “Na célula modificada produz-se uma aptidão e com ela uma diferenciação do elemento, ainda que nos não assista razão para acreditar que, originariamente, esse elemento diferisse das células nervosas homólogas.”
Delboeuf opina: “Toda impressão deixa um traço inapagável, isto é: uma vez diversamente dispostas e forçadas a vibrar de outro modo, as moléculas jamais retornarão ao estado primitivo.”
E Richet:[ii] “Assim como na natureza não há, jamais, perda de energia cósmica, mas apenas transformação incessante, assim também nada se perde do que abala o espírito humano.
“É a lei de conservação da energia, sob um ponto de vista diferente. Os mares ainda se agitam do sulco neles deixado pelas galeras de Pompeu, pois o abalo equóreo não se perdeu e apenas se modificou, difundiu-se, transformou-se em infinidade de pequenas ondas, que, a seu turno, se transmudaram em calor, em ações químicas ou elétricas. Semelhantemente, as sensações que abalaram o meu espírito há 20 ou 30 anos, deixaram-me o seu sulco, ainda que esse sulco seja desconhecido de mim mesmo. Então, mesmo que não possa evocar a sua lembrança, ignorada e inconsciente em mim, posso afirmar que ela não se extinguiu e que essas velhas sensações, infinitas em número e variedades, exerceram sobre mim uma influência assaz poderosa.”
É fato averiguado que a repetição de palavras e frases de um idioma acaba por tornar-se uma operação automática para o espírito. Ele não mais procura palavras e frases, que lhe acorrem de si mesmas. É uma verdade incontroversa, máxime em se tratando da língua materna. A memória consciente se esvanece e perde-se no inconsciente. Pois o que sucede com a linguagem ocorre com qualquer outra aquisição intelectual, seja matemática, física ou química, etc.
Em todos nós, a tábua de multiplicação tornou-se automática; e, contudo, começamos por decorá-la conscientemente.
Estas afirmativas colocam-nos justo em face do problema que assinalamos – a ressurreição das lembranças prístinas, a despeito da renovação integral e global das células.
Maudsley [iii] presume que a rapidez extraordinária das permutas nutritivas do cérebro, parecendo, à primeira vista, uma causa de instabilidade, explica, ao contrário, a fixação das lembranças:
“A reparação, efetuando-se sobre o trajeto modificado, serve para registrar a experiência. Não é uma simples integração o que se dá, e sim uma reintegração. A substância restaura-se de um modo especial, o que faz com que a modalidade produzida seja, por assim dizer, incorporada ou encarnada na estrutura do encéfalo.”
De acordo, quanto ao resultado. Também acreditamos que os novos movimentos perispirituais, os que houverem sido determinados pela modificação da força vital da célula destruída, imprimem às células que se reformam as mesmas modificações que influenciaram as primeiras. Mas, se não houver perispírito, que será que imprime nas células novas o antigo movimento? É a eterna questão: quem faz a restauração? Poder-se-á presumir não seja a célula inteiramente destruída; que o seu remanescente tomou o novo movimento e que as moléculas substituintes adotem o novo ritmo vibratório.
Vamos supor que assim seja. Mas, em se dando nova permuta, haverá, necessariamente, diminuição de intensidade: 1º) por causa do tempo transcorrido; 2º) por causa da inércia das antigas moléculas a vencer. Renovada inúmeras vezes a operação – o que é tanto mais certo quanto extrema é a rapidez das permutas nutritivas –, o movimento primordial será tão fraco que se poderá dizê-lo quase desaparecido. E o que é verdade para uma célula também o é para um conjunto de células, de sorte que as sensações delas dependentes, e que, por associação, formam uma lembrança, ficarão quase apagadas na velhice do indivíduo. Tais lembranças deveriam, pois, ser as primeiras a desaparecerem. Ora, o que se verifica é justamente o contrário, de vez que, nas pessoas idosas, as lembranças da infância são as mais persistentes.
Em suma: se adotássemos essa hipótese, nenhuma sensação poderia conservar-se no ser, senão por tempo assaz limitado. Demonstrando-nos a experiência que assim não é, importa procurarmos outra explicação.
Quando afirmamos ser no perispírito que reside a conservação do movimento, damos como prova direta a manifestação da alma após a morte. Ela, a alma, se nos revela dotada de todas as faculdades e lembranças, não apenas de sua última encarnação, mas abrangendo longos períodos pretéritos.
Acreditamo-nos, portanto, mais próximos de uma explicação adequada aos fatos do que aqueles que atribuem o pensamento à massa fosfórica de há muito destruída, quando a alma é imortal.
Condições da percepção
Para que uma sensação seja percebida, ou por outra, para que se torne um estado consciencial, há que notar duas condições indispensáveis, a saber: a intensidade e a duração.[iv]
1º) A intensidade é condição de tipo assaz variável, mas faz-se preciso um mínimo para que se verifique a percepção. Nós não ouvimos os sons muito brandos, nem temos sabores de somenos. Temos logrado meios de diminuir, graduar a intensidade, graças ao invento de aparelhos que nos aumentam os sentidos, quais o microscópio, o telescópio, o telefone, etc. É por não guardarem intensidade constante que as percepções diminuem insensivelmente, até não mais poderem ficar presentes ao espírito, caindo, assim, “abaixo dos domínios da consciência”.
2º) A duração – O tempo necessário para que uma sensação seja percebida, ou por outra, para que o espírito tome conhecimento do movimento perispiritual, foi determinado há uma trintena de anos para as diversas percepções.
A do som faz-se ao fim de 0”,16 a 0”,14; a do tato em 0”,21 a 0”,18; a da luz em 0”,20 a 0”,22.
Para o mais simples ato de discernimento, o mais próximo do reflexo, temos 0”,02 a 0”,04.
Se bem que os resultados variem conforme os experimentadores, as pessoas, as circunstâncias e a natureza dos atos psíquicos estudados, ficou pelo menos estabelecido que cada ato psíquico requer uma duração apreciável, e que a pretensa velocidade infinita do pensamento não passa de metáfora.
Isto posto, é claro que toda ação nervosa, cuja duração seja inferior à requerida pela ação psíquica, não pode despertar a consciência. Para que uma sensação se torne consciente é imprescindível que o movimento perispiritual tenha uma certa duração, sem o que se fará o registro sem que a alma tenha dele conhecimento.
Tal como o fazemos em relação à intensidade, notaremos que um ato inicialmente dificultoso, e que demanda um certo tempo, torna-se mais fácil e mais rápido, quanto mais repetido.
Ao fim de muitas repetições, o tempo exigido será tão curto que o eu não mais o percebe e ele se torna, então, inconsciente.
[i] Ver Ribot – Les Maladies de la Mémoire; Richet – Origines et Modalités de la Mémoire; (Revue Philosophique, junho 1886); Delboeuf – Eléments de Psycho-physique; Ferrière – La Vie et l’Âme; Féré – Sensation et Mouvement; Binet – Les Altérations de la Personnalité.
[ii] Richet – Origines et Modalités de la Mémoire.
[iii] Maudsley – Physiologie de l’Esprit, tradução Herzen, pág. 140.
[iv] Ribot – Les Maladies de la Mémoire, págs. 22 e seguintes.
Autor: Gabriel Delanne
Fonte: A Evolução Anímica