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TERRA DO BRASIL


          Entre os numerosos pedaços de jornais e de revistas que conservo entre os meus papéis velhos, arquivo começado há já algumas dezenas de anos, deve figurar um soneto de D. Pedro de Alcantara, o falecido ex-imperador do Brasil. Certo de o en­contrar entre esses papéis, não o procuro entre­tanto, pois tenho-o também no pensamento.

          É uma composição singular. É’ um dos es­critos mais comoventes de nossa literatura.

          Nesses quatorze decassílabos há mais do que exigia Horácio em sua Arte Poética, isto é, mais do que talento propriamente dito: há toda a alma do autor.

          Vê-se nesse soneto o verdadeiro amor à pátria, perdida para o venerando poeta, e admiro quan­ta tristeza e saudade, mas ao mesmo tempo quanta resignação evangélica demonstrou, escrevendo-o, o vulto mais respeitável de nossa História.

          Uma revolução militar, animada por alguns civis ilustres, tinha proclamado a Republica nesta terra, e o venerando monarca, infundadamente te­mido pelos chefes dessa revolução triunfante, tinha sido expulso para sempre do país por ele tão ternamente amado, e coagido a deixar para sempre, e às pressas, a cidade onde tivera o seu berço.

          Notificaram-lhe a sentença cruel na tarde do dia 15, e onze horas depois, em uma triste madru­gada de novembro; partia para o Velho Mundo o bondoso ancião.

          De nada lhe valeu a lembrança dos seus qua­renta e nove anos de governo, durante os quais, se alguns erros e injustiças houve, como os vemos em todos os governos, originaram-se, os erros, da fra­gilidade dos conhecimentos humanos, aos quais a perfeição é vedada, e nasceram as injustiças das paixões políticas de alguns dirigentes, ou da inca­pacidade intelectual e moral de alguns administra­dores, tendo esses, nos três ramos do poder, sabido ilaquear, durante algum tempo, a confiança do mo­narca e o julgamento da opinião pública.

          Ha pessoas assim. Ascendem a elevadas po­sições iludindo seus superiores e fazendo alarde de qualidades que lhes são estranhas.

          De outros podem-se nomear erros e deplorar injustiças; de D. Pedro II, individualmente, não há erros nem injustiças censurados pela imparciali­dade da História.

          Chegando à Europa, D. Pedro de Alcantara, velho, enfermo, acabrunhado pelos desgostos, desi­ludido quanto à gratidão dos homens, curvado ao peso da injustiça, e sentindo-se arrebatado para sempre da pátria querida, viu-se presa de uma des­sas tristezas que soem às vezes estiolar, aniquilar, matar.

          Ele, o chefe supremo de um dos maiores impé­rios do mundo, tornara-se menos do que o mais pobre e humilde dos brasileiros, menos do que o mais pobre e humilde dos filhos do velho reino; porque cada um desses tinha uma pátria em cujo serviço encontrava esperanças, e tinha uma bandeira a cuja sombra se abrigava, enquanto ele, o monarca expatriado, era um estrangeiro em todas as terras, era um forasteiro entre todas as nações.

          Filho do fundador de nossa nacionalidade, e tendo dedicado quarenta e nove anos e quatro meses ao governo honrado do vasto império, fôra transformado num proscrito, e era pai e avô de brasileiros proscritos!

          Poderia ter resistido, talvez com eficácia, à onda revolucionária. Uma parte das classes armadas era-lhe fiel, e a seu brado de socorro acorreria a maioria da população agradecida e respeitosa. Não o quis fazer: a República era mais uma conquista da liberdade, e contra esta seria a resistência um crime. Ao seu coração magnânimo repugnava a ideia de se derramar sangue pela conservação de um trono.

          Pobre, recusou a pensão oferecida pelo governo provisório; sem fundos disponíveis na ocasião, para ocorrer às despesas da viagem preferiu recorrer a um empréstimo, relativamente pequeno, contraído para com um amigo, a aceitar a grande indenização oferecida à custa do tesouro público.

          E assim saiu desta terra, naquela triste madrugada de novembro, acompanhado pela família inconsolável. Partiu pobre, humilde e cheio de desgostos, mas grande em sua pobreza, sublime em sua humildade, e tão digno de respeito e de veneração em sua dor, que ainda na Baía, quando avistava o ultimo porto brasileiro, era saudado com os vinte e um tiros de homenagem aos chefes de Estado.

          Assim partiu para o exilio o venerando brasileiro, cujo único crime tinha sido ter tido o berço junto aos degraus de um trono, deixando para sem­pre o Brasil, naquela triste madrugada de novem­bro, enquanto novos astros se preparavam para iluminar o cenário político da república recém-criada, alguns dos quais tão desastradamente iam agir no governo da jovem democracia.

          Deve ser dolorosa e lúgubre a vida do proscrito.

          Tem origem nessa tristeza profunda, nessa desconsoladora nostalgia, o soneto em que D. Pedro de Alcantara se refere a um pouco de terra brasi­leira, sobre a qual devia repousar seu corpo alquebrado pelo sofrimento, pelos desgostos, pela idade e pelos labores, logo que sua grande alma o aban­donasse, saindo a receber o prêmio dos justos e dos bons.

          É mais triste e comovente o soneto do ex-im­perador em sua encantadora simplicidade, do que quantas produções tenho visto, em nossa língua, obedientes às exigências da forma, da métrica e da rima.

          Impressiona mais, pela serenidade da esperan­ça de um julgamento póstumo, do que Castro Alves cantando as desditas dos míseros escravos, ou Laurindo Rabelo no seu Adeus ao mundo, ou Gonçalves Dias em seu Adeus aos meus amigos do Maranhão.

          Parece haver aí um pedaço da alma do poeta, vibrando de amor pela terra querida onde ele nas­ceu, e de onde a ambição e o medo fizeram-no arre­dar-se para sempre, até que, muitos anos depois, vieram os corpos dos dois amados imperantes re­pousar no Brasil.

          Transcrevo o interessante soneto:

          Espavorida agita-se a criança, de noturnos fantasmas com receio, mas si abrigo lhe dá materno seio, fecha os doridos olhos e descansa.

          Perdida é para mim toda a esperança de volver ao Brasil. De lá me veio um pugilo de terra, e nesta, creio, brando será meu sono, e sem tardança.

          Qual o infante dormindo em peito amigo, Tristes sombras varrendo da memória, o’ doce pátria, sonharei contigo!

          E entre visões de paz, de luz, de glória, Sereno aguardarei, no meu jazigo, a justiça de Deus na voz da História.

* * *

          Sim, bondoso e nobre ancião; sobre esse pugilo de terra brasileira, atraída pelo teu amor a pátria para as terras longínquas da Europa, deve ter sido sereno o teu sono.

          Assim dormem os justos.

          Assim descansam os bons.

          E não esperaste longo tempo o pronunciamento da História imparcial.

          Seja a tua memória um incentivo para a feli­cidade de teus conterrâneos, e a tua grandeza, no poder ou no exilio, seja continuamente um exemplo para a atualidade e para os pósteros.

Autor: Abel Gomes
Fonte: Pérolas Ocultas
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